Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós
A Companhia Vale do Rio Doce pode ser considerada uma das melhores vendedoras de minério de ferro do mundo, além de ser a maior em quantidade comercializada. Mas em matéria de fretes internacionais ela pode ser classificada como um desastre. Ao desativar a Docenave, privou o Brasil do melhor dos negócios: os fretes na navegação de longo curso, com ênfase na Ásia.
Um dos efeitos mais imediatos e cristalinos da privatização da Vale, em 1997, foi a progressiva desativação da Docenave, criada em 1962 e controlada pela estatal, que detinha 92% do capital. O principal objetivo da empresa de navegação, implantada quando a CVRD já líderava o mercado, era levar minério de ferro para o exterior (principalmente para o Japão e, depois, para a China) e trazer carvão mineral (sobretudo da Austrália) para o Brasil (e também petróleo, em menor escala e problematicamente).
A trajetória da empresa era de sucesso até a venda do controle da CVRD à iniciativa privada, por decisão do governo de Fernando Henrique Cardoso. Seus excelentes resultados não se deviam a nenhum protecionismo da Vale porque o minério de ferro é vendido a preço FOB, posto para o comprador no porto de embarque. A partir daí, o transporte é decisão de quem compra o produto. A Vale dissociou o preço FOB de venda do minério do frete oceânico para poder enfrentar seu principal competidor, a Austrália, muito mais próxima dos mercados asiáticos. Foi através de vendas cada vez maiores para o Japão que a estatal brasileira viabilizou comercialmente, a partir dos anos 1980, a valiosa jazida de Carajás, que possui o melhor teor de hematita do planeta. Quem comprasse seu minério teria liberdade para contratar o transporte mais barato até o ponto de entrega.
A Docenave provou eficiência conquistando mais clientes e se expandindo, até se tornar uma das maiores empresas de transporte de granéis sólidos do mundo. Chegou a operar com uma frota de 15 embarcações próprias e 30 fretadas, parte dessa frota com bandeira brasileira e outra parte com bandeira da Libéria e das Bahamas. “O mar parece não ter limites para nós”, disse o presidente da empresa, almirante Henrique Sabóia, que foi ministro da Marinha.
Através do seu braço liberiano, a Seamar, em parceria com um armador norueguês, a Docenave colocou nas águas, em 1986, os dois maiores míneropetroleiros do mundo, ambos construídos no Brasil: o Docefjord e o Tijuca. Logo em seguida contratou um navio ainda maior, o Docecanyon, de 275 mil toneladas. Dois anos depois, com a privatização, as águas começaram a se inverter.
Em 2000, o Docefjord, ainda em idade ativa, com 14 anos de uso, foi vendido pelos novos donos da Vale por 17 milhões de dólares. Seis navios da frota foram transacionados com a espanhola Elcano por US$ 53 milhões. Em 2001, 18 graneleiros já tinham sido passados em frente. A Docenave passou a se utilizar principalmente de navios afretados, quando necessário. A empresa sumiu dos mares, só começando a retornar em 2001, mas apenas no comércio de cabotagem, pela costa brasileira, até ser substituída por uma nova empresa, a Log-In, que acabaria por se desvincular da Vale, tornando-se autônoma.
Os analistas observaram que a Vale, já privatizada, ao decidir se desfazer da sua frota de alto curso, abriu mão dos fretes internacionais, que agregam mais valor do que a venda do minério em si. A empresa, que se orgulha de planejar a longo prazo e ter afinada visão estratégica, caminhou na direção oposta à da opção preferencial que iria fazer, pelo mercado asiático. Assim, destruiu o patrimônio construído com muito esforço e competência pela Docenave, ao oferecer fretes competitivos e conquistar clientes, independentemente da empresa-mãe.
Os fretes dispararam a partir de 2001-2002, quando a demanda chinesa por minério de ferro esquentou. Se é verdade que a navegação de cabotagem pela costa brasileira se expandiu a taxas superiores às do transporte interoceânico entre o final do século passado e os dois primeiros anos desta década, a partir de 2003 o frete entre o Brasil e o Japão e a China superou tudo que ocorreu até então. Esse é o destino de 60% dos quase 100 milhões de toneladas extraídos de Carajás e embarcados no porto da Ponta da Madeira, em São Luís do Maranhão, no ano passado.
O faturamento com a venda desse volume de minério rendou 5 bilhões de dólares. Mas a conta do frete foi a US$ 9 bilhões. Só uma minúscula parcela dessa última conta ficou com o transportador brasileiro. Se a Docenave não tivesse sido sufocada e quase extinta, até renascer apenas para redistribuir internamente minério trazido por outros navios internacionais, e para a cabotagem, alguns desses bilhões seriam faturados pelo Brasil, com muito maior rentabilidade do que a comercialização do minério. Mesmo com seu crescimento recente, dominando 70% do transporte entre os portos marítimos brasileiros, a Log-In só faturou US$ 120 milhões.
O erro de avaliação e de decisão, que destruiu a posição brasileira no mercado internacional de fretes, é evidente. A prova definitiva é a corrida recente que a Vale faz para afretar navios e reconstruir uma frota própria. Chegou-se a especular sobre a encomenda de dois ou três super-cargueiros de 540 mil toneladas. Os navios encomendados, porém, não estarão nos mares antes de cinco anos, por causa do excesso de demanda nos estaleiros espalhados pelo mundo, que estão lotados de pedidos.A busca do tempo perdido, se vier a se consumar, talvez ocorra quando o mercado já não estará tão aquecido quanto nos últimos quatro anos. Comprovado o erro desastroso, falta saber por que ele foi cometido: por simples imprevidência ou por qualquer outro motivo. Mas esta é uma história na qual ninguém parece querer tocar no Brasil. É uma típica batata quente.
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