Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós
Não vou, ao menos por enquanto, discutir se a atriz alemã Nina Hoss, filha do deputado “verde”, Willi Hoss, há vários anos com presença no meio acadêmico do Pará, merece ou não ser a primeira “embaixadora especial do Pará”, título que passou a ostentar no final do mês passado. Com o que não concordo é com o método adotado para a criação: em regime de urgência urgentíssima, a honraria foi instituída e, de pronto, concedida, tudo feito em circuito fechado e por decisão arbitrária (mais uma) da governadora Ana Júlia Carepa e sua entourage, o cenáculo dos sábios plenipotenciários.
Para não haver dúvidas e suspeições sobre uma “ação entre amigos”, o governo devia ter constituído um conselho, composto por pessoas credenciadas a esse tipo de avaliação, que sugeriria nomes e opinaria sobre os que lhe fossem submetidos. Assim, ao invés de decretos categóricos e auto-suficientes, os atos seriam fundamentados, o que permitiria ao cidadão tomar ciência (e, eventualmente, aprovar) o seu embaixador honorífico, legitimando o seu mandato.
Embora o título seja simbólico, ele tem conseqüências. Uma delas é material: as idas e vindas do representante honorário serão custeadas pelo contribuinte paraense. Ao “toma lá”, por isso, devia corresponder o “dá cá”, abolido in limine. A outra conseqüência é – digamos assim – moral: sem colegiado, quem é que avaliará o desempenho da nossa primeira representante (e dos que vierem a segui-la, com a expedição de novas delegações de poderes)? Ora, no processo atual, os que lhe conferiram o título. Ou seja: os mesmos. O que acentua ainda mais o caráter da medida: uma ação entre amigos.
O arbítrio é, no Brasil, uma prerrogativa do chefe do poder executivo (federal, estaduais e municipais). Eles tudo podem porque têm a chave que abre os cofres públicos e a caneta que demite e admite no serviço público (com ênfase no presidente da república, com acesso ao erário mais robusto e à mais extensa folha de pessoal). Um embaixador inglês que observou essa concentração de poder ainda na década de 30 do século passado, Ernest Halmbloch, num livro sugestivamente intitulado Sua Excelência, o Presidente, foi expulso sumariamente do país pela autoridade suprema ofendida. Por ter dito a verdade.
Punido o herege, a prática permanece imutável até hoje. Os integrantes do Ministério Público elegem seus favoritos para uma lista de mais votados para a chefia do MP, mas o governador pode, dentre estes, escolher quem quiser. Da mesma forma, tem o poder sacramentador absoluto em relação aos novos desembargadores, podendo ignorar a hierarquia da lista que lhe é submetida. Essa prerrogativa é exercida majestaticamente pelo quase soberano, mas cada vez mais provoca crises. A diversificação da sociedade e a complexidade na sua representação colidem com essa verticalização no mando pelo chefe do poder executivo.
Faria muito bem à sociedade e à democracia se essa instância fosse suprimida. Cada categoria e cada instituição responderiam por seus atos, dando-se conteúdo a uma autonomia que existe apenas na letra vazia da lei e na formalidade da sua aplicação. O ordenador final e geral da despesa pública, que é o chefe do poder executivo, exerceria a função de coordenação e correção, no que lhe coubesse, a posteriori, ao invés de invadir previamente a seara alheia e tumultuar o equilíbrio entre os poderes. Muitos problemas seriam prevenidos e outros tantos resolvidos. Como este em fermentação e ebulição, da Universidade do Estado do Pará.
A UEPA é como outras instituições de ensino superior, que, ao invés de criarem efeito demonstrativo, funcionando como laboratório e modelo para outras engrenagens da sociedade, menos superiores e exemplares em seus pressupostos, acaba repetindo os procedimentos viciados ou deformados de outros agentes, como os políticos e seus partidos. Desde novembro, a instituição lava roupa suja e exibe suas máculas na tentativa de escolher seus novos dirigentes.
Ao invés de ser olímpico e modelar, o processo eletivo tem regras e procedimentos suspeitos, quando não viciados. Sob o impulso categórico de que só interessa ganhar, vale quase tudo (e um pouco mais), embora geralmente os candidatos aleguem a pobreza e a carência da instituição. Nem por isso se tornam mais moderados e ponderados nos seus projetos de poder.
Na cadeia de erros e deslizes, porém, a pior iniciativa foi a da governadora Ana Júlia Carepa, acolitada pelos seus inefáveis “luas pretas”. Ela podia alertar a comunidade acadêmica da UEPA e advertir os futuros dirigentes para suas responsabilidades, antecipando-lhes sua vigilância na observação da lisura e dos interesses superiores do Estado, mas não devia ir além do reconhecimento da autonomia universitária, ainda quando mal exercida.
Se um questionamento judicial suspendesse (temporariamente ou em definitivo) sua sanção, como ocorreu, devolveria à universidade o poder de suprir a lacuna. Mesmo havendo dúvidas e contradições formais quanto a essa autonomia, por que não deixar ao Conselho Universitário a tarefa (e o ônus) de indicar o reitor e o vice-reitor temporários, até a deliberação final da justiça sobre o contencioso armado pelos pretendentes aos cargos?
O bom senso é ignorado em proveito da voracidade pelo poder, o poder todo. Maquiavéis de orelha de livro e Richelieus de algibeira engendram operetas para justificar a desastrada intervenção da governadora em mais esse capítulo da já cabulosa novela. Diz o chefe da casa civil que o drama seria evitado se um dos candidatos, ao invés de recorrer à justiça da suposta decisão que a governadora iria tomar, esperasse pela concretização do ato. Ele teria uma agradável (e surpreendente, para abusar da tautologia e do pleonasmo) surpresa: o candidato de preferência de sua excelência era ele, não o adversário, tido como pule da vez.
Diante desse enredo, cabe a legendária frase do grande Machado de Assis, este, sim, um autêntico bruxo: ao vencedor, as batatas. A nós, o circo.
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