Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós
Não comprar carro era uma atitude política na época do “milagre econômico” brasileiro, durante o governo do general Médici (1970-1974). A classe média se motorizava desbragadamente (assim como comprava televisão colorida e jogava na loteria esportiva). As taxas de crescimento da economia gravitavam em torno de 10%. A indústria de bens de consumo se expandia de vento em popa. O Brasil ia “pra frente”. Quem discordasse, por não amá-lo, deveria deixá-lo. Éramos uma ilha de prosperidade num mar internacional encapelado.
Quem dizia isso? O mago do milagre, o então todo-poderoso ministro da fazenda, Delfim Neto. Só o Japão, que também fazia o seu milagrezinho, conseguia nos ombrear. Eu estava em Brasília quando o ministro do comércio exterior, Saburo Okita, perguntou ao onipotente ministro Delfim qual era a taxa de poupança do Brasil. Sabendo o que o esperava, pois competente ele é, Delfim desconversou: o Brasil não tinha poupança compatível com seu célere crescimento, mas tinha a Amazônia. A imensa fronteira de recursos naturais ia compensar nossa insuficiente poupança.
O que compensou mesmo foi o endividamento externo, que iria cobrar a conta quilométrica na década seguinte, ainda sob o império, já atenuado, do mesmo Delfim. Ele galgara ministérios (da agricultura ao planejamento) porque quem (também) entendia do riscado, como Simonsen e Rieschbieter, pulou do barco em menos de um ano de gestão do general João Batista Figueiredo (que o atual comentarista da Rede Globo, Alexandre Garcia, tentara popularizar como “o João”, imitando o “seu” Arthur, cunhado por Ibrahim Sued para o marechal Costa e Silva).
Ainda vivo (vivíssimo, aliás), aos 80 anos, Delfim Neto sai-se com mais uma boutade: Lula salvou o capitalismo. É verdade. Lula emprestou sua estampa e seu carisma para continuar o “milagre” de três décadas atrás. A classe média enriquecida compra mais carros (de dois a quatro por família, que nem quer saber sobre o congestionamento que provoca lá fora, no espaço público), acumula imóveis, viaja pelo mundo, se cosmopolitiza (e agora, uma vez tirado o bolo do forno monetário, distribui fatias aos sans-coulote, tratando de tocá-los com rédeas curtas estatais, subvenção direta e mais-valia relativa). Com base em qual taxa de poupança interna? Ora, debocha o nosso guia, um boneco competente: isso é detalhe.
No fundo, a base é a mesma: endividamento externo. Ao invés de formar poupança para investir num plano de desenvolvimento (individual, familiar ou social), acumulam-se ativos. A variação patrimonial de todos é notável, mas a liquidez depende da poupança dos outros, que chega ao país por falta de opção ou pela melhor taxa de juros do mercado mundial. Um terço da riqueza que circula pelo Brasil Grande de Lula, pai dos pobres e mascote dos ricos, é crédito. Um quarto do crédito é dinheiro estrangeiro, que rende no taxímetro do Banco Central ou pela absorção patrimonial, que se desnacionaliza. O anunciado feito da Petrobrás rende mais para a Espanha, na bolsa de Nova York, do que ao Brasil na Bovespa.
Na época do “milagre econômico” manu militari protestava-se andando a pé, resistindo às tentações das vitrines, ao apelo consumista, ao carro facilitado pelo crédito. Hoje, no prosseguimento da mesma novela, o país pode ser surpreendido e desabar do seu sonho de grandeza por falta de causas e de princípios. A esquerda, que era a fonte das utopias e a depositária das esperanças, negociou sua consciência em troca da “bolsa-ditadura”, do cargo no fundo de estatal, na ante-sala da multinacional ou no biombo da burocracia.
O que virá depois desses truques inteligentes e sofisticados dos Delfins? Talvez caiba, na antevisão, a resposta que Einstein deu a quem lhe perguntou, logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, sobre como seria travada a conflagração bélica seguinte: com arco e flecha, respondeu o sábio. É o que restará ao Brasil, depois de ter queimado seu patrimônio moral no baile plutocrata-proletário da ilha Fiscal?
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