Bellini Tavares de Lima
Advogado
Os romanos, herdeiros culturais dos gregos, acreditavam que a vida dos humanos era criada, construída e encerrada por obra de três entidades a que davam o nome de Parcas. Como ensina alguém, "eram três divindades irmãs, donas da vida e da sorte dos homens. Cloto, a que tecia, no momento dos nascimentos, os fios da vida de cada um; Láquesis, a que colocava nesses fios a boa ou má sorte que acompanharia cada mortal; Átropos, a que vigiava a vida dos mortais e que, em determinado momento, cortava-lhes os fios da vida". No dia 23 de junho deste ano de 2008, Átropos resolveu agir e cortar o cordão que nos propiciava D. Ruth Cardoso.
Seria fácil repetir o perfil da trajetória social, familiar cultural, acadêmica, política e o que mais seja de D. Ruth. Bastaria repetir, com alguma maquiagem, a ampla cobertura jornalística que, por sinal, me chamou a atenção pela maneira respeitosa como a tratou, quase que todo o tempo chamando-a antropóloga e não prosaicamente ex-primeira-dama. Repetiu-se com muita justiça que D. Ruth não era um planeta, era um astro, tinha luz própria. Não só nesse momento dramático, mas também durante toda a vida, D. Ruth parece ter conseguido algo reservado apenas aos muito especiais: um respeito tal que derruba a tese de que toda unanimidade é burra. Tudo isso foi enaltecido e, o que foi ainda melhor, com dados históricos ricos e esclarecedores. Eu, a exemplo, talvez, de muitos outros brasileiros, pouco ou nada sabia sobre D. Ruth. Somente agora, quando ela se tornou eleita da divindade impiedosa, pude saber um pouco mais a respeito dela. Muitos de seus papéis e contribuições começaram a ser ressaltados, dentre eles o de reunir, em torno de si, adversários políticos que talvez nem mesmo os interesses mais soberbos conseguissem. Pois eu, ignorante confesso, quero registrar que recebi de D. Ruth uma outra espécie de contribuição de enorme valia.
Ainda recentemente a mídia trouxe a público a informação sobre o assassinato brutal de uma menina índia de 16 anos que portava sérias deficiências mentais e físicas. A jovenzinha se encontrava em um abrigo para os xavantes no Centro de Apoio à Saúde Indígena, em Brasília. Foi vitima de abuso sexual seguido de morte. Este caso não teve, obviamente, a repercussão que mereceu o episódio no Rio de Janeiro, aquele em que um oficial do exército entregou três jovens a uma facção criminosa, inimiga daquela que detém o controle do morro onde se realizava uma obra dita social, mas de evidente caráter eleitoreiro, tudo sob a proteção das forças armadas.
A mídia é impertinente. Também andou divulgando que, mais uma vez entre centenas de outras vezes, proprietários de postos de gasolina misturavam à gasolina uma quantidade de álcool muito superior à permitida, em óbvio prejuízo aos que paravam no estabelecimento para abastecer seus veículos. E, não contente com isso, essa mesma mídia trouxe à luz do dia a concessão de carteiras de habilitação a pessoas com deficiência visual. Em outras palavras, carta de motorista para cegos (dentre outros impedidos) que, à luz da lei, poderiam perfeitamente se aventurar pelas ruas com suas máquinas maravilhosas, levando de roldão a quantos por acaso tivessem a má sorte de estar em seu caminho.
Vendo isso tudo e, sobretudo, com a clara e inevitável percepção de que esse "isso tudo" é apenas uma parcela modesta do todo, não tenho como evitar aquela vontade de "pegar o meu boné". Como, não sei. Alguém já disse que o suicídio até poderia ser uma solução, mas é muito perigoso. Fica, então, só aquela sensação de tédio, aquele desinteresse que pode ser até um caminho alternativo e velado para o próprio suicídio.
Começo a sentir uma combinação de vergonha e raiva por fazer parte dessa categoria biológica. Uma vontade de esmurrar esse estúpido "homo sapiens".
Aí vem essa Átropos, por certo uma parca mal amada, exercer seu odioso oficio de cortar o fio de D. Ruth. E D. Ruth, finalmente é mostrada aos olhos do mundo e dos ignorantes confessos como eu. Pois, ao ouvir a seu respeito, ao aprender um pouco sobre ela, começo, aos poucos, a me refazer. É como se tivesse dormido a noite toda na rua, sob um frio terrível e, ao amanhecer, lá viesse o sol me aquecer lentamente. E começo, também aos poucos, mas com lucros incontáveis, a resgatar a fé na minha espécie, o orgulho de ter nascido parte dela e, ainda de quebra, na mesma leva. Gente como D. Ruth até pode ser alvo dessa Átropos intransigente, mas. seguramente, não foi moldada pelas outras duas que se arvoram a desenhar a trajetória humana. Essa trajetória redentora, certamente D. Ruth a construiu com seu ouro pessoal.
Recebi de D. Ruth um novo ânimo para não perder completamente a fé na minha própria raça. Não sei se essa fé vai durar muito tempo, mas agora, foi divinamente providencial. Obrigado, D. Ruth. E aos deuses, que as Parcas, nos poupem!!!
27 de junho de 2008
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