segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Diploma de jornalista: estigma da condenação

Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós

Quem é contra a exigência do diploma do curso superior de comunicação social para o exercício do jornalismo faz o jogo dos patrões. Esta é a sentença da Federação Nacional dos Jornalistas, anunciada pelo seu presidente, Sérgio Murillo de Andrade, durante o 6º congresso dos jornalistas paraenses, em Belém, no mês passado. Ele foi inclemente e implacável, sem qualquer possibilidade de atenuação ou exceção na condenação. Como eu estava na mesma mesa, a mais lotada de todas durante o evento (em todas as demais houve um único expositor e poucos debatedores) e sou contra essa regra, protestei.
Fui presidente do sindicato dos jornalistas do Pará exatamente há 30 anos, em 1978. Nossa equipe assumiu suas funções com dois compromissos de campanha, que nos deram a vitória por larga margem de votos. Um deles era elevar o padrão de salário e de condições de trabalho, que eram ruins. Conseguimos, graças à proposta de dissídio coletivo que apresentamos, o primeiro da história do sindicato.
Os juízes do Tribunal Regional do Trabalho foram surpreendidos (e os donos das empresas jornalísticas também) com o estudo que fundamentou nossas reivindicações, exercício em causa própria do jornalismo que fazíamos pela causa coletiva. Demonstrávamos, com base na análise dos balanços das empresas, que elas podiam dar um reajuste muito acima do que estavam querendo e muito além do índice da inflação. Não só para compensar as perdas anteriores como também porque tinham disponibilidades financeiras para tanto, ao contrário do que alegavam.
Ganhamos: um aumento excepcional, salário profissional, delegado sindical e outras conquistas inéditas. Elas foram canceladas depois em Brasília pelo TST, sob forte pressão corporativa dos patrões, mas as empresas acabaram cedendo conquistas trabalhistas expressivas, como jamais voltaria a se repetir.
Outro compromisso era com a representatividade da categoria. Excluímos todos aqueles associados que nunca tiveram ou que deixaram de ter relação de trabalho em empresas jornalísticas ou afins. Durante certo tempo muitos se proclamaram jornalistas para usufruir odiosas vantagens concedidas pelo governo à categoria (justamente para seduzi-la): isenção do imposto de renda, desconto de 50% nas passagens aéreas e financiamento integral da casa própria. O resultado é que o sindicato estava artificialmente inchado: muitos associados e poucos jornalistas.
Como conseguir aprovar a instauração de dissídio coletivo para mudar as desfavoráveis condições de trabalho dos jornalistas com uma quantidade enorme de associados ligados aos donos das empresas ou sensíveis à sua conclamação? Eles não dariam o quorum necessário para a deliberação. O que fizemos então? Cumprimos a lei: promovemos um recadastramento, abrindo largo prazo para os interessados. Os associados que quisessem continuar sindicalizados deviam comparecer pessoalmente à secretaria do sindicato e demonstrar que ainda exerciam a profissão.
Logo começou uma campanha contra nós, através da coluna Repórter 70, de O Liberal. Nela fomos acusados de cassar velhos jornalistas, cometendo uma iniqüidade, como os militares vitoriosos fizeram a partir de 1964. Todos, porém, tiveram amplo direito de defesa. Seus direitos seriam preservados se os comprovassem. Como? Levando suas carteiras profissionais atualizadas. Dissemos isso em resposta aos venenos destilados pela coluna, que se recusou a publicar nossa carta de esclarecimentos. Prática contumaz na casa até hoje.
Com jornalistas que trabalhavam nas redações, o sindicato conseguiu aprovar o dissídio, mas não foi apenas para isso que combatemos os quintas-colunas. Admitidos como colaboradores ou recebendo carteirinhas graciosas, eles faziam o jogo dos patrões. Podiam aparecer nas redações para cumprir tarefas dos profissionais se estes cometessem o despautério de fazer greve, esvaziando assim o movimento. Também emprestavam seus nomes para matérias encomendadas pela direção. Formavam um exército de reserva de mão-de-obra. Por isso mesmo, uma de nossas campanhas era para restringir ao máximo a figura do colaborador, que só devia ter participação eventual e em função de um notório saber em alguma matéria ou especialidade.
Nunca reivindicamos – e sequer passou pela nossa cabeça a idéia – atribuir ao diploma do curso de comunicação social exclusividade na admissão à profissão de jornalista. Estávamos plenamente conscientes de que uma das grandes deficiências desse profissional era não se reciclar, ler pouco, não adotar métodos de análise e interpretação com base científica e ser um tanto refratário à admissão dos seus erros. Uma passada pela Universidade lhe seria valiosa, indispensável, em qualquer curso da área de humanidades.
O monopólio do curso superior de comunicação bloquearia uma importante vertente de formação de jornalistas, que chegam espontaneamente às redações ou têm idiossincrasia com o ensino convencional, movendo-se à base de vocação. Queríamos que as empresas fossem obrigadas a incentivar e promover a reciclagem dos seus profissionais.
A inédita obrigatoriedade do curso de comunicação social, estabelecida pelo governo militar através de decreto-lei, em maio de 1969, é um produto coerente com o AI-5, de cinco meses antes. O autoritarismo que ceifou o que restava de liberdade no país impôs uma via única para a formação de jornalistas, circunscrita a um curso que apresentava um viés de exotismo em sua origem (basta lembrar a “comunicóloga da PUC”, personagem criada por Jô Soares na televisão). Não só para padronizar e manter sob controle a formação dos novos profissionais como para interromper o fluxo natural de talentos, que garantiu a alta qualidade do jornalismo na república de 1946. Mesmo que fosse para exigir nível superior de formação, evitando rebaixar o salário profissional, por que não incluir todos os cursos universitários?
No debate no congresso dos jornalistas, Sérgio Murillo tentou refazer a história alegando que em 1962 houve um projeto nesse sentido, o que dissociaria a regulamentação da profissão do pior regime político da história brasileira, o da Junta Militar, que assumiu o poder quando o marechal Costa e Silva adoeceu. Intenção é uma coisa, realidade é outra. Foram rejeitadas todas as tentativas de inovar em relação à tradição da imprensa ocidental, que não inclui o critério adotado no Brasil, único a estabelecer a condição vigente.
Só a junta dos três ministros militares, que usurpou a presidência da república, consumou a violência, não por acaso perpetrada através da anomalia do decreto-lei. Também não por coincidência, o jornalismo é das raras profissões regulamentadas dessa forma, em capítulo especial no âmbito da Consolidação das Leis do Trabalho.
Quando nossas divergências começaram a esquentar o ambiente do debate, Sérgio Murillo saiu-se com mais uma estocada. Disse que eu estava ali, criticando o sindicato dos jornalistas do Pará, mas só estava ali porque esse mesmo sindicato me convidara para o encontro, deixando-me falar. Eu não tivera o mesmo tratamento por parte da ANJ.
A Associação Nacional de Jornais – lembrou o presidente da Fenaj – se recusou a incluir a agressão que sofri, cometida por Ronaldo Maiorana, como um caso de violação à liberdade de imprensa, no site dedicado ao tema, em conjunto com a Unesco, órgão da ONU para educação e cultura. O que acontecera comigo fora simples rixa familiar, como as que marcaram a vida em Exu, no sertão nordestino, modelo desse tipo de refrega.
De fato, essa posição, endossada pela OAB do Pará e mantida até hoje pela instituição, que conservou o agressor no comando da comissão dedicada à liberdade de imprensa, constitui um exemplo vil da parcialidade dessas organizações. Elas não conseguem superar seus antolhos corporativos e seus interesses comerciais. Mas a ANJ é uma entidade patronal. Ela está disposta a violar suas declarações de intenções para fazer o jogo do seu associado, o grupo Liberal. Já o sindicato exerce representação dos trabalhadores em particular e da sociedade em geral, quando se trata de exercer a defesa da liberdade de expressão, sem a qual não existe jornalismo de verdade (nos gulags, só há o jornal oficial).
No meu caso, houve uma combinação de aberrações. A entidade patronal atirou ao lixo a defesa de um princípio e a organização trabalhista foi incapaz de ir além de um corporativismo estreito, a fonte de intolerâncias, autoritarismos e tiranias, mesmo quando adotados a pretexto de servir à história. História, aliás, que esses campeões da causa deturpam e manipulam, alegando que todos os meios se legitimam pelo fim pretendido. O que, na maioria das vezes, acaba por resultar no fim da própria história.

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