Lúcio Flávio Pinto
Na noite de 14 de agosto, a TV Liberal exibiu as imagens de uma reportagem que devia desencadear efeitos semelhantes aos do escândalo que envolveu a Santa Casa de Misericórdia do Pará, três meses antes. A chamada da matéria já dizia tudo sobre seu propósito: "Descaso e sofrimento dos que precisam de atendimento psiquiátrico no Hospital de Clínicas". Uma câmera oculta revelava o interior da emergência psiquiátrica do Hospital de Clínicas Gaspar Viana: pacientes deitados sobre colchões estendidos no chão, se alimentando ali mesmo ou em estado de extrema agitação, na fila de espera por atendimento.
Quatro horas depois que a reportagem foi ao ar, pouco depois da meia-noite, o site do Diário Oficial do Estado na internet divulgou decreto da governadora Ana Júlia Carepa exonerando o presidente da fundação responsável pelo hospital, Haroldo Koury Maués, e o diretor assistencial, Kleber Ponzi. Ao contrário da expectativa gerada, porém, o assunto morreu: a matéria apenas foi reprisada na 1ª edição do Jornal Liberal. Não teve continuidade na programação da televisão e não chegou ao jornal O Liberal ou ao Amazônia Jornal. Nenhuma letra nas duas publicações do grupo foi dedicada ao assunto. Sua utilidade parece ter-se esgotado com o afastamento dos dois dirigentes do hospital. Nada de campanha local ou escândalo nacional.
Ao contrário do que também aconteceu com a Santa Casa, a demissão foi imediata, sem esperar sequer pela edição impressa do DO. No primeiro dia útil após a exoneração (segunda-feira, 18 de agosto), decretada no feriado da adesão do Pará à independência, a secretária de saúde, Laura Rossetti, anunciou que acabara de assinar convênio com uma clínica particular de psiquiatria de Belém, como forma de aliviar a pressão sobre o Hospital de Clínicas e evitar as cenas chocantes exibidas pela TV Liberal.
Quatro meses antes foi subitamente cancelado o convênio que a Secretaria Estadual de Saúde mantinha com o Hospital Divina Providência, de Marituba, para a reserva de 10 leitos como retaguarda para pacientes do HC. O convênio foi adotado em virtude da superlotação da emergência psiquiátrica do Hospital de Clínicas, a única do Pará. E esse excesso de atendimento resultou da crise dos Centros de Atenção Psico-Social, a maioria deles instalados pelo Estado, mas sob gestão dos municípios.
Como os CAPS deixaram de funcionar satisfatoriamente, a emergência psiquiátrica do HC teve que se desviar das suas funções originárias, de atendimento dos casos de alta e média complexidade, para funcionar como pronto-socorro. Alguns pacientes procuram o hospital para receber medicamentos, que não são fornecidos nos CAPS. A crise da superlotação estava anunciada: a emergência do HC registrou 15 mil atendimentos em 2005. Em 2006 foram 18.500, 70% dos quais da área metropolitana de Belém. Entretanto, há uma restrição legal à ampliação dos leitos psiquiátricos, que não podem passar de 48 (sendo 30 pacientes em internação e 18 na observação em emergência) em um total de 240 leitos do HC, o convênio com o "Divina Providência" foi a alternativa para manter o serviço. O HC estava recebendo, em média, 60 pacientes em 24 horas na urgência.
Koury e Ponzi, que por várias vezes tentaram a prorrogação do convênio ou uma nova relação com outro hospital, foram surpreendidos, já fora dos seus cargos, com a contratação emergencial de uma clínica particular em Belém, com dispensa de licitação. A surpresa do diretor assistencial do HC começou no momento em que viu a reportagem ser veiculada pela TV Liberal. A emissora aproveitou apenas um trecho curto da entrevista que ele deu, não incluindo na reportagem nenhuma das longas declarações prestadas pelo diretor de ensino e pesquisa do hospital, Benedito Paulo Bezerra. Benedito foi anunciado, quatro horas depois, como o novo presidente do HC, no lugar de Haroldo Koury.
O então presidente da fundação mantenedora do HC procurou a secretária Laura Rossetti tão logo surgiram os rumores de que o diretor assistencial, Kleber Ponzi, seria demitido. Como a motivação para a medida seria política e não técnica, Koury tentou combatê-la através de contatos políticos. Um mês antes do ato se consumar, ele disse para a secretária que não aceitaria a mudança porque não fora consultado sobre a iniciativa, revelada apenas informalmente, e por não ter restrição técnica ao titular da Diretoria Assistencial, responsável pela coordenação de todos os processos clínicos. Por causa dessa atitude, Koury caiu junto com Ponzi.
Afastadas as pessoas consideradas incômodas pela cúpula petista na área de saúde do governo, as providências que eles cobravam sem sucesso (e sem uma resposta sequer) da administração estadual para aliviar a pressão sobre o Hospital de Clínicas serão, finalmente, adotadas? É a expectativa que fica do episódio, uma trama política armada em conluio com o grupo Liberal, através de sua televisão. E há também uma dúvida: como é que esse grupo petista, da Democracia Socialista, o mesmo da governadora, conseguiu armar essa parceria com o grupo Liberal, se até recentemente as partes estavam desavindas? Como é que foi tramado e consumado o novo acordo?
Tantas perguntas, tão poucas respostas. É a regra na comunicação pública no Pará, principalmente quando envolve interesses poderosos, como os casos dos dois dos maiores hospitais do Estado.
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