Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós
Escrevi o prefácio do livro Catalinas e Casarões (edição do autor, 283 páginas), que Ademar Ayres do Amaral lançará no dia 2. Reproduzo o texto como um convite a essa proveitosa leitura.
O Paraná da Dona Rosa não é Yasnaia Polyana nem Ademar Ayres do Amaral é Leon Tolstoi. Guardadas as devidas proporções, entretanto, ele introduz, com este saboroso livro, uma nova toponímia na geografia universal. Por sua localização e por sua história, essa região, a meio caminho entre Belém e Manaus, as duas maiores cidades da Amazônia, já havia ensaiado a sua inserção em grande estilo pela pena de outros autores. Mas nenhuma das investidas consignadas na parca bibliografia se compara ao texto que Ademar escreveu, baseado em sua própria memória, na de outras pessoas, que consultou, e naquilo que de melhor foi escrito a respeito.
É provável que esse método não tivesse proporcionado resultado de tão alto nível se aplicado por outra pessoa. Mas Ademar é nativo da terra, é herdeiro da mais importante dinastia local, viveu e testemunhou quase tudo que relata, tem uma sensibilidade rara e pôde rever seu passado pela lente da visão crítica, que sua formação técnica de engenheiro e seu distanciamento físico lhe possibilitaram. O que ele escreveu vai se tornar um livro clássico, uma obra com o gosto de quero-mais das criações cheias de vida, inspiradas por uma profunda identificação com o objeto da sua atenção. Ademar Ayres do Amaral cantou como nenhum outro a sua aldeia. Por isso, este livro é universal. Como Tolstoi antecipou que se tornam criações como esta.
O Paraná Dona Rosa é uma das muitas ruelas de água entre duas ou mais avenidas aquáticas, que se multiplicam na maior bacia hidrográfica do planeta. Tomou esse nome porque a dona Rosa foi "a mais poderosa mulher que existiu no lugar". Não eram muitos os poderosos do paraná, mas eles eram, de fato, muito poderosos. Depois de se ter notabilizado como um dos maiores produtores de cacau do Baixo-Amazonas, o Paraná da Dona Rosa, com a decadência desse cultivo, se tornou "um ajuntamento importante de grandes fazendas, a maioria delas nas mãos do coronel Joaquim Gomes do Amaral e de seus descendentes". Fazendas como a dos Amaral havia a Nazarezinha, a Aliados, a Salva-Vida, a São Nicolau. Eram universos próprios, quase auto-suficientes, que se comunicavam conforme suas regras e seus códigos especiais.
Ademar, neto do coronel maioral, reconstitui esse mundo particular, original, interessante. Outros dos seus parentes podiam ter-se dedicado a essa tarefa. Os patriarcas, que geraram suas descendências no local a partir do final da primeira metade do século XIX, trabalharam duro para que seus sucessores se educassem onde melhor conseguissem. Sucederam-se os doutores, as carreiras brilhantes e os títulos. Mas também o crescente distanciamento dos lugares onde seus umbigos foram plantados. Neste livro, Ademar refaz esse vínculo, que o tornou ponte entre Óbidos e Santarém, as duas principais fontes de civilização ma região, e o projeta para todos nós, beneficiados pela leitura do seu livro. Nele, há histórias e personagens da melhor literatura, exatamente porque forjados na mais autêntica realidade. Como Joaquim Gomes do Amaral, dono de lancha a vapor numa época em que esse tipo de embarcação "era um privilégio de poucos endinheirados". Tão potente que venceu a porfia com o navio Rio-Mar, "o paquete mais veloz da frota da Amazon River". Ou o tio Adalberto, "o último representante e talvez o mais carismático de uma incontável dinastia de coronéis que teve início no século dezenove com a cultura do cacau", define-o Ademar.
Ao final da leitura, fica a sensação de prazer que uma boa narrativa, com bons "causos" e excelentes observações, sempre nos deixa. Mas também uma série de sensações sobre esse mundo, que não apenas foi despovoado da sua gente, mas até mesmo sofreu perdas físicas, causadas tanto pela natureza, que já roeu - pela erosão - um terço dos 40 quilômetros de comprimento (e 1.6 milhão de hectares de área) que o Paraná Dona Rosa possuía, como pelo próprio homem. A natureza costuma compensar seus danos. O que faz a mão humana, mesmo quando age buscando melhorar suas condições de vida, não oferece a mesma segurança. A vida era melhor quando por ali só havia fazendas, povoados, quilombos e nativos, ou agora, com a penetração de mineradoras, das sociedades anônimas e do "progresso"?
É a moral que preciosas reconstituições de época, como esta, de alto valor documental e testemunhal, nos provocam. Ademar segue o fio da meada na sua viagem pela escrita, sem se preocupar em definir ou julgar. Seu compromisso é de fidelidade ao que viveu. Não seleciona nem censura. Fala do fogão alimentado com hastes de lenha nobre, como o pau-mulato ou a macaqueira. Fala também do almoço de domingo com um cardápio invariável: a tartaruga do Trombetas, a melhor que há. Uma cultura da destruição e do desperdício, observada pelos parâmetros do politicamente correto de hoje? Não, uma cultura, simplesmente.
O tamanho do homem era diminuto comparado ao tamanho da natureza, que ainda era a verdadeira protagonista da história. A tecnologia e a demografia acabaram com essa relação tendente ao equilíbrio: um número cada vez maior de homens ingressa no processo produtivo para atender quantidade muitas vezes maior ainda de outros homens. Quanto mais distante, mais exigente esse consumo, menos atenção se dá a quem já estava no lugar e nele fizera sua história. Não há tempo nem espaço para esse mundo. Mas há um traço meio perverso (ou perverso e meio) de união entre os dois momentos. Um filho de Adalberto e sua primeira mulher morreram de febre tifóide, "doença que hoje já quase nem se ouve falar", diz o sobrinho.
Provavelmente, porém, a maior epidemia aconteceu em Oriximiná depois da era dos "grandes projetos", quando Adalberto já era só lembrança. Simplesmente porque o benefício da modernidade não se espraia, não é para todos, como tinha que ser, se reconhecido o direito dos que chegaram primeiro e criaram este maravilhoso mundo que Ademar Ayres do Amaral salva da extinção com este livro maravilhoso.
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