Por Arnaldo Bloch
Faz tempo que não te vejo nesta pasta de papelão pálida. É sempre um prazer reencontrar as cores de tua luxuosa superfície, vários espectros entre azul e verde, linhas d’água, relevo com as iniciais UFRJ, brasão da República, e as bordas brancas amareladas pelos 23 anos desde a formatura até este 2009, em que sua relevância foi julgada pelo STF. Não sou dos que pensam que o fim da tua obrigatoriedade para o exercício da profissão represente uma tragédia para a classe. Acredito na diversidade que, ademais, já existe na prática, papel e monitor. Mas tampouco sou daqueles que preconizam que tua existência foi e será em vão, ou que podes ir ao lixo ou ao fundo de um arquivo B, categoria velharia inútil.
Para mim, não foi. Tampouco foi barricada de resistência de esquerda aos Anos de Chumbo, como alguns querem: quando ingressei na ECO-UFRJ (1982), me uni foi a uma turma de pós-anarquistas que se divorciavam das palavras de ordem da geração anterior e, ao mesmo tempo, afastavam-se do encaretamento de usos e costumes universitários que se anunciava, ameaçando acabar com tudo que há de positivo na criação em permanente movimento, na universidade vista não só como arcabouço curricular ou massa de engajamento, mas como território livre para a vida e a reflexão.
Não te jogarei no lixo nem no fundo do porão, querido diploma: daqui em diante, passarás, sim, a prateleira de honra, e comprarei uma nova pasta, onde repousarás só tu, sem os outros parcos títulos que me foram outorgados, que não se comparam a ser um filho da ECO, de Bussunda, Zé José, Fátima Bernardes, Urubu, Sérgio Rodrigues, Paulo Roberto Pires, Luiz Noronha, Henrique Koifman, e a mistura aqui de célebres e cérebres e vice-versa é bem aleatória mesmo, quem viu e viveu sabe o que ali se criou e o que se cria sempre que há liberdade e há vagar para vagar entre pátios e salas e jardins internos e bares e Barthes.
Barthes: para que serve, perguntou-me uma vez um grande jornalista, um papa do jornalismo, da velha geração, que noutra ocasião me dissera: “Diploma, eu só defendo se for com a corda no pescoço”, e até hoje não entendi muito bem o que ele quis dizer por óbvia, e talvez sintomática, ingenuidade.
Sou a favor de tu, e não sou contra o fim da tua obrigatoriedade, embora ela me incomode, não por ver-me ameaçado, mas por ter crescido com essa noção de tua importância. Não foi somente uma noção apreendida e automatizada. Foi uma noção adquirida ao longo do aprendizado. Não jogo no lixo o ciclo básico, quando disciplinas de ciências humanas sinalizaram para o fato de que informação não é nada se não confrontada com as humanidades, que andam tão longe, por sinal, de nosso sistema educacional, vão aí uns 40 e tantos anos, coisa que pouco se discute.
Outra bagagem de respeito que carrego dos tempos da ECO é a noção, pisada e repisada, de que jornalistas têm um compromisso com a verdade, ainda que atingi-la no alvo seja fundamentalmente utópico, e não só com a verdade, mas com algum senso de responsabilidade para com uma ideia de cidadania sempre em formação, e também, e sobretudo, um impulso de independência, antenas ligadas para a grande rede de influências, de lobbys, de grupos de interesse, que se forma, muitas vezes, através de máscaras doces e sedutoras, outras vezes nas vestes de vendedores de saber e de sentenças indiscutíveis. Não. Trouxe de lá um senso de que somos donos de nossas consciências, e que elas devem estar em consonância com um senso comum de utilidade pública, e não com essa ou aquela banquinha da grande feira de valores e mercados e vaidades e superfluidades e modas e manias que nascem deusas, e daí Barthes bateu um bolão na arte de decifrar.
Em teu nome, querido diploma, ouvi muita coisa que me pareceu digna, para lá das ideologias, coisas singulares, naturais de uma “missão”, a missão do jornalista, e que, com certeza, não estarão formuladas nas tribunas de outras cadeiras profissionais. Esses conceitos, obviamente, não são exclusivos de uma faculdade de jornalismo. Eles são universais e podem ser adquiridos através das leituras de cada um, da allure que conduz cada persona, e sabemos que na história da imprensa não apenas literatos mas economistas, engenheiros, advogados ajudaram a construir páginas nobres.
Torço, querido diploma, porém, para que não estejamos navegando numa época em que, pela excessivo grau de especialização e mínimo grau de universalização, os novos peritos que vierem às redações para ralar no dia a dia e subir o morro venham imbuídos de algo maior do que impor algum pensamento monolítico ultra-seccionado, que os yuppies fiquem de fora, que os médicos sejam leitores (como eram), que os engenheiros filosofem, que os incorporadores saibam diferenciar arqueologia de antropologia, que o saber, a honestidade, a mente plural, o espírito do coletivo e a compreensão aguda das diversas faces da verdade estejam conosco e convosco.
Assim, querido diploma, sobreviverás.
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