quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Jari: uma história errada desde o coronel José Júlio

Lúcio Flávio Pinto


O grupo Orsa anunciou, no início do mês, que decidiu transferir sua matriz de controles, antes instalada em São Paulo, onde a corporação tem sua sede, para Monte Dourado, no Pará. A decisão foi adotada como forma de “celebrar os 110 anos do início do extrativismo no Vale do Jari e a concepção do Projeto Jari, adquirido no ano 2000 pelo Grupo Orsa, data da mudança em relação à sustentabilidade”.

A transferência é uma iniciativa positiva. A inspiração é péssima. Não há razão decente para celebrar o início do império do coronel José Júlio de Andrade no vale do rio Jari. Durante quase meio século, entre 1899 e 1948, quando vendeu as terras que dizia lhe pertencerem a um grupo de comerciantes portugueses, o imigrante cearense impôs um regime de violência, abusos e trabalho escravo sobre legiões de trabalhadores, que recrutou para a coleta de castanha, seringa e balata.

A história oficial, à qual os atuais proprietários do Jari dão um toque de renovação descabida, proclama José Júlio como herói, o desbravador do vale, o mecenas, patrono e padrinho de centenas de afilhados e seus dependentes, aos quais proporcionava ofício e meios de sobrevivência. Era, de fato, muito poderoso. Tinha um dos mais extensos domínios de terra, embora boa parte da papelada que juntou não lhe conferisse propriedade legal. Ele esquentava os papéis com seu prestígio junto aos políticos e governantes da 1ª República no Pará. Dava-lhes abundância de votos recrutados em currais cativos e financiava campanhas. Em troca, recebia os favores da lei – e o que a própria lei não seria capaz de conferir.

Essa farsa desmoronou quando, em 1928, um dos navios de sua frota atracou em Belém. Trazia dezenas de trabalhadores, que se rebelaram contra o regime de escravidão a que eram submetidos. Sob a liderança de outro cearense, José Cesário, tomaram a embarcação e fugiram do reino de pavor, trazendo consigo as provas vivas e documentais do que sofriam. Embora José Júlio comprasse jornalistas e autoridades, O Estado do Pará reproduziu com destaque as denúncias dos fugitivos, provocando um grande impacto junto à opinião pública da capital.

O impacto ainda ressoava quando os tenentes fizeram sua revolução, em 1930. O líder do movimento no Pará, Magalhães Barata, tomou José Júlio como exemplo do regime “carcomido” que queriam eliminar e lhe dispensou perseguição pessoal, como uma espécie de vingança pelo que fez no Jari aos trabalhadores. Obrigou o antigo soba a se refugiar no Rio de Janeiro e se desfazer do latifúndio.

Depois de passar pelo grupo português, as terras foram compradas por Daniel Ludwig, em 1967. Começava o Projeto Jari, nacionalizado em 1982, porque o milionário americano se recusou a pagar o empréstimo internacional que contraiu para a aquisição da fábrica de celulose e de uma termelétrica, com o aval do tesouro nacional. Em 2000 o empreendimento passou para o grupo Orsa, que pagou um dólar como valor simbólico e assumiu a dívida ainda remanescente, de 415 milhões de dólares.

Ao celebrar os 110 anos de extrativismo no Jari, a Orsa retoma uma história trágica dando-lhe falsa roupagem cor de rosa. Antes de se lançar a essa infeliz aventura, a empresa devia fazer uma revisão mais rigorosa do passado no vale. Um dos participantes da revolta de 1928, Jesus de Miranda Carvalho, escreveu um livro, Revolução do Jari (2004, 113 páginas, Smith Produções Gráficas), que é um testemunho precioso sobre a história verdadeira, que a empresa paulista ignora, do “maior escravista da região”. Fazendo a opção errada, os novos donos do Jari assumem um papel negativo no novo enredo.

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