Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal
O engenheiro agrônomo Manoel Moura Melo fez o que todas as pessoas que realizaram qualquer tipo de obra pública deviam fazer: durante dois anos refletiu sobre sua experiência pioneira, realizou pesquisas, fez entrevistas e com base nas suas anotações escreveu Trilhas de idealismo – a saga extensionista, pequeno e proveitoso livro (174 páginas, edição do autor) sobre a história da Acar-Pará. Um dos seus propósitos é contribuir para tirar a extensão rural da UTI, na qual se encontra em todo Brasil. Manoel acredita que se ela ressurgisse “dentro das fórmulas educativas, metodológicas e não-políticas poderia servir de um salva-vidas, para amenizar os problemas do campo e alavancar o desenvolvimento rural”
Gentilmente, Manoel me encaminhou outro livro, O Serviço Público por Dentro, em formato pequeno, também edição do autor (com apoio de amigos), 138 páginas. Com ironia, humor e doses de acidez, Renato Coral reflete nessa obra simples sobre sua longa experiência em órgãos públicos no Pará, tanto estaduais quanto federais. O livro se ressente de revisão e de melhor edição, mas alguns dos testemunhos têm valor histórico, mesmo quando os personagens existem sob pseudônimos, incluindo o autor.
O principal episódio na vida de servidor público de Coral foi em 1976 (ou 1977, segundo seu próprio registro), quando chefiava o IBDF (Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal, antecessor do Ibama) em Belém. Ele aplicou uma multa milionária ao projeto agropecuário da Companhia Vale do Rio Cristalino, de propriedade da Volkswagen, que era implantado em Redenção, no sul do Estado. A companhia desmatou ilegalmente nove mil hectares para formar pastagem.
A área foi toda queimada, provocando o maior incêndio até então registrado por um satélite, o Skylab, monitorado pela Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos. A imagem do incêndio correu mundo e teve repercussão internacional. O valor da multa, de 23 milhões de cruzeiros da época, que superava todo o capital do projeto agropecuário, aprovado pela Sudam em 1974, também estourou em Brasília como uma bomba e foi escoar na Alemanha, terra natal da Volks.
Na sua crônica do acontecimento, relata Coral, falando de si na terceira pessoa do singular. Diz:
“Pressões federais, estaduais e de outros grupos empresariais desabaram sobre a cabeça do Delegado, que comeu o pão que o diabo amassou.
Veio então uma ordem do órgão central, para que o Delegado encaminhasse o Processo para Brasília, a fim de ser estudado por uma comissão de juristas.
Uns 15 dias após, o Processo foi devolvido às origens, com a multa reduzida em 90%, o que significava que o titular estava certo, mas foi muito carrasco.
Logo em seguida, o Delegado recebeu a visita de um dos assessores da empresa e, após uma conversa demorada, o representante perguntou qual a marca do automóvel pertencente ao Delegado.
O Da Silva [o próprio Coral], percebendo a malícia da pergunta, respondeu:
– ‘Opala, modelo 75, de segunda mão!’
Continuou o assessor:
– ‘Por que Opala?’
O Da Silva, querendo por um término na conversa, respondeu amuado:
– ‘Porque eu já ultrapassei a fase de carros de brinquedo’.
Retrucou o assessor:
– ‘Permita-me comunicar-lhe que o senhor é um dos poucos cidadãos que poderá receber um carro zero quilômetro, amanhã, na porta da sua residência, com todos os acessórios, bastando que faça a mágica de fazer pulverizar a papelada’.
O Da Silva então deu o tiro de misericórdia:
– ‘Mágico esconde vara. Pegue a sua e faça bom uso dela. Queira retirar-se que eu tenho mais o que fazer!’
Após a saída do aliciador, entra no gabinete Dona Dina, fiel secretária, e pergunta ao Delegado:
– ‘O senhor está lívido. O que foi que aconteceu?’
O Delegado contou a tentativa de suborno.
– ‘Comunique logo ao senhor Presidente’, aconselhou a secretária.
O Da Silva, mais calmo, raciocinou alto:
– ‘Dona Dina! Se eu comunicar à Direção Geral que fui tentado a receber o presente, caso o mandatário tomasse alguma providência, a multinacional iria defender-se alegando que eu é que teria pedido o automóvel. Como sou um bosta n’água de um simples Delegado Estadual, a proposta fica entre nós’.
Cobrindo os fatos, conversei várias vezes com Renato Coral nesse período, mas ele não denunciou a tentativa de suborno, pelos motivos que confidenciou à sua secretária e só revelou em 2000 (data da publicação do livro), quase três décadas depois. A história, porém, se encaixa na mecânica dos fatos de então. Ao se defender da autuação do órgão ambiental, a Volkswagen alegou que era pressionada por outro órgão federal, a Sudam, a lhe exigir celeridade na execução do cronograma do projeto agropecuário.
Rapidamente, quem tinha poder decisório contemporizou, houve acerto (não se sabe documentalmente até qual profundidade) e a Volks continuou a queimar, desmatar, plantar capim e colocar gado na sua propriedade. Até que demonstrou sua incompetência como fazendeira, o que tentou ser pela primeira vez na Amazônia, o único lugar do mundo onde não utilizou sua competência específica reconhecida internacionalmente (como montadora de veículos automotores) e arriscou a pecuária. Vendeu a fazenda para o grupo Matsubara, do Paraná, que passou em frente as terras, que acabaram servindo para assentamentos da malsinada reforma agrária na Amazônia. Uma moral nada edificante, como a lição da maioria dos “causos” que Renato Coral reuniu neste seu livrinho pedagógico. Muitos não acreditarão, mas essa reconstituição de experiências no serviço pública não é – embora seja – um livro de piadas de humor negro.
Um comentário:
Onde obter os livros do Dr. Manuel?
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