Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal
O vale do rio Trombetas, no Pará, será palco de uma experiência inédita no Brasil. O governo vai mapeá-lo e etnozoneá-lo (neologismo muito recente), com a participação dos próprios beneficiários, os índios. Eles fornecerão informações, participarão dos trabalhos de campo e serão co-responsáveis pela execução dos serviços. Uma parceria original entre o Estado e os índios num projeto que é realizado pela primeira vez no país com essas características.
Para torná-lo possível, a Secretaria de Meio Ambiente do Estado assinou um convênio com a Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, no valor de 859 mil reais, com vigência de um ano. O objeto do convênio tem uma descrição quinhentista, revisada pelo jargão acadêmico atual: “Trabalhos de Etnozoneamento da porção paraense das Terras Indígenas Trombetas, Mapuera, Nhamundá Mapuera e áreas ocupadas por povos indígenas na Floresta Estadual do Trombetas, num total de mais de 4 milhões de hectares zoneados participativamente, com vista a viabilizar ações de ordenamento territorial aliadas a conservação da biodiversidade, para propiciar a gestão territorial e ambiental integrada das áreas protegidas da Calha Norte do Estado do Pará”.
Como há componentes inteiramente novos nesse título pomposo, é preciso penetrar nos seus bons propósitos e promessas agradáveis. A sociedade já amadureceu para a atitude inteligente de reconhecer o valor do conhecimento acumulado pelas populações que antecederam os europeus na ocupação da região e procurar não só preservá-lo como utilizá-lo de forma concreta e prática. Ganhará em tempo e em riqueza de informações se reconhecer esse componente étnico autônomo e indescartável. Mas o que há por trás dos conceitos generosos e bonitos?
Há contradições e omissões. Em seu site, a associação Kanindé diz que seu trabalho durará não um ano, mas dois. Diz ainda que a área possui seis milhões e não “mais de 4 milhões de hectares”, como está assinalado no sumário do convênio. A uniformização das duas fontes, que seria premissa, torna-se assim um incômodo. Indica desde já que haverá aditivos para prorrogar prazo e esticar recursos?
Outra questão é óbvia: por que ir a Rondônia para fazer esse convênio? Não há nenhuma outra entidade (a Kanindé é uma OSCIP, organização civil de fins específicos, criada no final de 1992) no próprio Pará, que podia fazer esse trabalho? Se não há, não seria necessário pelo menos fazer uma audiência pública ou consultar especialistas antes de assinar o convênio? A Kanindé tem suas credenciais, mas restritas a Rondônia, não muito numerosas nem de impressionar. Está em condições de fazer a intermediação técnica entre os índios e o governo nesse serviço original, que constituem as características pioneiras da empreitada?
O propósito dessa iniciativa, de “consolidar o maior corredor de biodiversidade do planeta”, na calha norte do rio Amazonas, é de grande importância. Por isso mesmo, não podia ser iniciada com tão poucas informações e tantas dúvidas.
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