Lúcio Flávio Pinto:
Em 70 anos de existência no Pará, iniciada em 1931, dos quase 90 anos que acumula no Brasil, o Partido Comunista Brasileiro só elegeu um parlamentar pela própria legenda. Foi o deputado estadual Henrique Santiago, um motorneiro dos bondes da firma inglesa Pará Eletric, que depois se tornaria sapateiro para sobreviver, ao ser demitido em função de sua atividade política.
O PCB conseguiu eleger mais alguns parlamentares por outras siglas e ainda contou com simpatizantes bem postados no poder local. A maior façanha do velho “partidão” poderia ter sido realizada através de Almir José de Oliveira Gabriel, hoje com 78 anos, sem mandato e sem partido, que foi secretário de saúde, prefeito biônico de Belém, senador, candidato a vice-presidente da república (na chapa do paulista Mário Covas, já falecido) e, por suas vezes, governador do Pará. Nenhum comunista paraense ostenta currículo igual, sequer parecido, conforme se verifica em Cabanos & Camaradas, livro de Alfredo Oliveira, lançado no ano passado, em edição do autor.
Apesar de suas 680 páginas, o livro não dá ao episódio a relevância que ele tem como momento decisivo nos rumos que o PCB seguiria. Merecia maior detalhamento, ainda mais porque o autor já escreveu uma paquidérmica biografia do ex-governador (que, surpreendentemente, não cita na bibliografia do mais recente dos seus livros, embora trate do tema).
A trajetória do ex-governador exemplifica à perfeição a carreira de alguns dos principais expoentes do célebre “partidão”. Almir era militante e integrava a base de médicos. Foi recrutado em 1963 pelo próprio Alfredo Oliveira, em grupamento integrado por quatro futuros secretários estaduais de saúde: Wilson da Silveira, Ernani Mota, Nilo Almeida e o próprio Almir.
Continuava militante em 1974, quando dirigia o então Sanatório (depois Hospital) Barros Barreto (“uma vez que a sua presença era fundamental para a continuidade da cirurgia torácica”, por ele introduzida em Belém, depois de curso que fez no Rio de Janeiro) e ao assumir a Secretaria de Saúde do Estado, no segundo governo do coronel Alacid Nunes. Os militares sabiam dessa filiação, mas, segundo Alfredo Oliveira, não o destituíram do cargo por causa da sua competência. Já o partido, embora surpreendido pelo convite, não fez objeção por se tratar de função técnica “e sem compromisso político com o partido do governo”.
Mas a trilha do futuro governador não foi retilínea. Ele dava sua contribuição financeira mensal para os cofres do PCB, mas, ao ser convidado pelo advogado Carlos Sampaio para “ajudar a dirigir o Partido”, em 1965, “nem mesmo pensou na proposta, pois não poderia aceitá-la diante do compromisso intransferível com a cirurgia torácica”, justifica o parente. Além disso, iria passar os dois anos seguintes em São Paulo, se qualificando em cirurgia cárdio-vascular. “Durante a permanência em São Paulo perdeu o contato com o Partido, absorvido pelo novo aprendizado cirúrgico”, diz Oliveira.
Em 1979, depois de ter sido diretor da Divisão Nacional de Tuberculose, durante o governo do general Ernesto Geisel, ao voltar ao Pará, em plena época da anistia, para assumir a secretaria de saúde, “retomou os contatos com o Partido, através de Raimundo Jinkings e Ruy Barata”. Mas quando deixou a prefeitura de Belém, em 1985, para se tornar senador, patrocinado por Jader Barbalho, filiou-se ao PMDB, “optando por encerrar sua ligação com o PCB, que reconquistara a legalidade após tantos anos de vida clandestina”, relata Alfredo. Sem assinalar o aparente paradoxo, que só se explicaria pelo projeto de poder de Almir Gabriel: o PMDB de Jader lhe daria o que o PCB não podia lhe proporcionar. E ele queria muito mais.
Apesar disso, os comunistas decidiram apoiar a candidatura do ex-filiado ao Senado, embora seus votos também ajudassem a eleger Jarbas Passarinho, igualmente apoiado por Jader para a outra vaga que estava em disputa em 1986 para a chamada Câmara Alta. “Resultado: ambos foram eleitos”, admite Alfredo, sem deixar de reconhecer que se tratou de mais um paradoxo nas estratégias de aliança do “partidão”.
Quando nomeado pelo governador Jader Barbalho prefeito de Belém, em 1983, substituindo Sahid Xerfan, Almir recorreu a correligionários do PCB. O mais atuante foi o sociólogo Mariano Klautau de Araújo, que criou e pôs para funcionar diversas comunidades de bairro, transformadas a seguir em núcleos políticos por sua importância na periferia da capital. Ainda aproveitou outros comunistas em seu primeiro governo, mas em posições secundárias. Os personagens principais passaram a ser outras figuras, como Paulo Chaves Fernandes, Simão Jatene e Sérgio Leão.
Se ainda era um simpatizante do PCB, a prática de Almir já não guardava qualquer conexão com a filosofia do comunismo, exceto pelo centralismo democrático dos leninistas, sempre muito mais central do que democrático. Como governador, passou a ser (ou tentou ser) mais um coronel da política paraense. Foi se desligando cada vez mais de qualquer programa para se ater às pessoas, procurando aquelas que serviam aos seus interesses e desligando-se das que não serviam mais ou que se apresentaram na contramão do seu caminho para o poder.
O procedimento de Almir Gabriel se assemelha ao de muitos outros comunistas, que deram prioridade à qualificação profissional (a partir desse momento a maioria se desfiliou, sem renegar, contudo, a crença original, embora atuando em atividades ou de uma forma pouco coerente com o passado). Raros acharam possível conciliar a atividade profissional (que a alguns enriqueceu) com a ideologia e a atuação política
A influência do PCB, após tantos anos de presença, foi pequena e o balanço da sua participação, modesto, apesar da quantidade de páginas que Alfredo Oliveira dedicou à sua história (repetindo demais informações e dando atenção a fatos absolutamente secundários, acaba desestimulando a leitura do seu importante volume). O PCB não se transformou em partido de massa.
Seu mais intenso trabalho foi junto a intelectuais e membros do governo. Não por outro motivo, no plano nacional, Luiz Carlos Prestes declarou que o partidão estava no governo com João Goulart, só faltava chegar ao poder, numa arenga irreal e soberba, que causou problemas superlativamente artificiais à esquerda no momento da repressão pelo regime militar de 1964, como de regra, aliás, na biografia do desastrado “cavaleiro da esperança”. O PCB criou uma ilusão de força e de representatividade, e acreditou que ela era verdadeira. A cada momento de testá-la, defrontou-se com a realidade, frustrou-se e encolheu.
Não que lhe tenham faltado glórias e acertos. Os comunistas tiveram invariavelmente que enfrentar o preconceito, a má vontade ou o ódio dos adversários, até mesmo dos que não se lhe opunham abertamente, mas foram incapazes de consolidar uma democracia autêntica no Brasil, que resistisse aos desafios sem sair atrás da espada guardada nos quartéis ou das manobras miseravelmente jurídicas. A ilegalidade a que os comunistas foram reduzidos na maior parte da sua história é causa tanto da sua pouca expressão na vida política nacional como do seu encanto, o fascínio que exerceram sobre milhões de brasileiros ao longo do tempo.
O golpe vital foi desferido contra o PCB em 1947, menos de dois anos depois da sua legalização, no auge da guerra fria, pelo governo Dutra (condestável da ditadura do Estado Novo, foi o primeiro presidente da redemocratização, antecipando anomalia que seria vivida, 40 anos depois, por José Sarney, ao fim da ditadura militar), com a participação decisiva dos bacharéis da UDN, civis em eternas manobras golpistas (“vivandeiras dos quartéis”, como se dizia).
O PCB podia ter iniciado nessa época caminhada no rumo da sua democratização interna e da oxigenação política nacional, à semelhança do que ocorreria com seu congênere italiano no pós-guerra. Tinha uma bancada federal expressiva (com um senador, Prestes, e 14 deputados federais) e conseguira façanhas localizadas, como a de eleger 18 dos 50 vereadores da Câmara do Distrito Federal, que era ainda o Rio de Janeiro.
Apesar do registro que o TSE lhe conferiu e da diplomação que concedeu aos seus eleitos, o PCB foi declarado ilegal através de uma lei com efeito retroativo, bem semelhante na mecânica (embora completamente distinta nos propósitos) da lei da ficha limpa atual. Os maquiavélicos de algibeira deviam meditar a respeito. Quando se abre exceção para o uso de meios ilegais, em proveito de fins legítimos, não se está violando a ordem democrática e continuando a encher de boas intenções o caminho do inferno?
Alfredo Oliveira não aprofunda nesse sentido o episódio, mas seu livro, até onde um militante pode ser imparcial, aborda as questões que seria preciso suscitar numa história do Partido Comunista Brasileiro no Pará, O livro conquistaria maior público se tivesse metade das páginas, que podiam ser suprimidas sem prejudicar o conteúdo. Ainda assim, merece ser lido: passa a ser fonte de referência indispensável sobre a história republicana do Estado. Ainda que se chegue a uma conclusão diferente – ou oposta – à do autor.
O capítulo paraense do PCB se encerrou em dezembro de 2004, com sua desativação no Estado. “A partir daí, sem presente, resta apenas o passado, por conta da História”, lamenta Alfredo Oliveira. Uma história rica, mas incapaz de sustentar um paralelismo entre os cabanos, que transformaram o seu tempo, e os comunistas, que seguiram o rio da história, mesmo quando tentaram nadar contra a corrente.
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