quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O Círio de todos nós



Lúcio Flávio Pinto:
Em época de Círio, a maior data no calendário paraense, o tema motiva algumas reflexões. A primeira é um prolongamento do comentário da edição passada: quantas pessoas participam da procissão, no segundo domingo de outubro? O Dieese previu 2,2 milhões de pessoas. Eu pus em questão essa avaliação. Podia ser a oportunidade para alguém patrocinar uma mensuração científica, a primeira desde que o Círio se tornou uma manifestação de massa, de dimensão que só agora é rivalizada – e até superada – pela Parada Gay de São Paulo. Um acontecimento religioso e outro profano. A carnavalização antropofágica (no sentido cultural, bem entendido) dos brasileiros em ação, mesmo que através do mimetismo e do sincretismo, componentes importantes num país mestiço como o nosso.
Pessoas que se manifestaram sobre o meu comentário se recusam a admitir esse tipo de abordagem. Acham que seria um desrespeito à fé dos devotos e uma ofensa aos brios dos paraenses. Mesmo que a litania dos 2 milhões de participantes da romaria venha a ser desfeita pela quantificação segundo método científico, o resultado em nada modificaria o conceito do Círio. Apenas daria conteúdo de verdade a uma proclamação carente de fundamentação, mas com todos os indícios de um exagero. Se o número o mais aproximado de um milhão for o correto, a grandiosidade do acontecimento permanecerá intocada. Religião não conflita com a verdade. Está na Bíblia o contrário: que a verdade é libertação.
Por causa dos dogmas religiosos, raros são os bons estudos sobre um fenômeno tão rico e complexo. Faltam mesmo as obras de mera divulgação. As melhores abordagens feitas ao Círio continuam a ser de Eidorfe Moreira e Savino Mombelli, de muitos anos atrás. A insistência das lideranças da festa em se basear em mitos e fantasias, traçando um círculo de fogo em torno da festividade, dificulta a melhor compreensão do fato, que é tanto religioso quanto profano.
É por isso que fatos novos estão surgindo e se consolidando sem sequer serem registrados, por contrariem a ortodoxia dos “donos” da festividade. Um exemplo dessas novas configurações é a relação dos evangélicos com o Círio. É sabido que eles não aceitam as imagens de santos, cultuados pelos católicos. Como é que se comportam em relação a Nossa Senhora de Nazaré, a padroeira dos paraenses (por suposto, de todos eles)?
Relevam essa divergência e participam das romarias e outros acontecimentos da cada vez mais vasta agenda do Círio, dando-lhe uma abrangência ainda mais ecumênica, à margem do aparato institucional? Se não participam, como acreditar no crescimento tão acentuado na freqüência à romaria se o contingente de evangélicos é, em Belém, um dos mais expressivos dentre todas as capitais brasileiras? Algumas das muitas questões a exigir respostas satisfatórias.
Aliás, os evangélicos propuseram um tema bem secular. Consultaram o Ministério Público Federal sobre a legalidade da venda de patrimônio público sem licitação pública. O Ministério do Exército se comprometeu a vender à paróquia de Nazaré (ou à ordem dos barnabitas?) a área onde o NPOR tinha sua sede (e atualmente é ocupada pelo IAP, o Instituto de Artes do Pará), ao lado da basílica de Nossa Senhora de Nazaré, onde a romaria termina.
Os advogados evangélicos querem saber qual é a base legal para a dispensa da licitação pública e a venda direta. Têm toda razão em pedir a explicação, que é de natureza puramente secular. Não há motivo para tomá-la como pretexto para uma disputa religiosa. As coisas da religião estão sujeitas ao ordenamento legal do país desde que o Estado se separou da Igreja, um dos pilares da república.
Deve-se encarar o questionamento com a razão e o bom senso, sem contaminá-lo por argumentos sectários ou fanáticos. Acho que a transação seria legitimada através de cessão onerosa ou outra forma jurídica para a transferência do direito real tendo como contrapartida o cumprimento de determinadas exigências. Uma delas podia ser o compromisso dos administradores da basílica de livrá-la de tudo que a ela foi agregado, desfigurando-a. Seja a área onde funciona um restaurante como a que serviu de necrotério, e à própria administração da ordem religiosa. A basílica ficaria livre dessas incrustações indevidas, íntegra, plenamente visível.
Todas essas instalações seriam transferidas para a área cedida, incluindo o restaurante, que é particular e se estabeleceu graças à competência dos seus particulares, sem prejudicar ninguém. O uso dessa área estaria condicionado à aprovação dos órgãos técnicos competentes do governo federal, aos quais os projetos e as plantas seriam submetidos, consultados o governo do Estado e a prefeitura, que poderiam ter o direito de veto. Cumpridas todas as exigências, num certo prazo o comodato se transformaria em transferência definitiva. O poder público deixaria de arrecadar, mas, em contrapartida, o interesse público seria atendido. Interesse de todos, católicos, de outras religiões, agnósticos ou ateus, todos eles cidadãos merecedores de respeito.
O Círio, ao invés de diminuir, se engrandecerá. Ainda mais se o solar da família do médico Deoclécio Corrêa for desapropriada e transformada em museu do Círio, para se tornar um núcleo vivo da memória do maior acontecimento cultural, em seu amplo significado antropológico, na vida dos paraenses.

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