Lúcio Flávio Pinto:
Uma juíza do Pará obrigou o Conselho Nacional de Justiça a avançar sobre sua competência e pela primeira vez interferir numa decisão judicial. O caso era muito grave e exigia providência enérgica e imediata. Podia resultar num rombo de R$ 2,3 bilhões ao Banco do Brasil.
O Conselho Nacional de Justiça foi criado há cinco anos e meio como um órgão de controle administrativo do poder judiciário, não podendo interferir em decisões judiciais. Mas na semana passada a entidade decidiu abrir a primeira exceção: a corregedora, Eliana Calmon, suspendeu liminarmente decisão da juíza da 5ª vara cível de Belém, Vera Araújo de Souza. De forma também liminar (isto é, sem consultar a parte contrária), a juíza paraense havia decretado o bloqueio de nada menos do que 2,3 bilhões de reais no Banco do Brasil, a pretexto de garantir o direito de saque de um detentor de duas contas com esse valor.
Todo o desenrolar do processo, submetido ao CNJ pelo banco, foi suficiente para que a corregedora nacional de justiça suspendesse os efeitos da sentença antes que viesse a se consumar o maior golpe individual já praticado contra o principal banco do país. Para fundamentar a intervenção no ato jurisdicional monocrático (ou seja, de competência individual), a ministra Eliana Calmon argumentou que a decisão extravasara “as raias da normalidade e se configurou como manifesta ilegalidade, ferindo o código de ética da magistratura”. Logo, a juíza se tornou suscetível de censura disciplinar, o que é atribuição do conselho.
A interpretação é elástica demais para caber numa leitura estrita das normas do CNJ e das regras do processo judicial, mas a corregedora não teve dúvida em extrapolar seus limites formais para alcançar um objetivo nobre: evitar o saque indevido de um valor fantástico, que seria feito com base em razões não só frágeis como inverossímeis.
Através de Juarez Correa dos Santos, que é seu representante legal, Francisco Nunes Pereira tentou primeiro aplicar o mesmo golpe na justiça do Distrito Federal. Logo ficou provada a falsidade dos documentos que apresentou como prova de que teria R$ 2,3 bilhões em duas contas pessoais no Banco do Brasil. O processo foi extinto sem consideração sequer pelo mérito.
No dia 4 de novembro a mesma ação (um insólito “usucapião especial constitucional”, desviado da busca pela confirmação da posse de uma área de terras para o domínio sobre contas bancárias, fórmula esperta, embora inusitada) foi proposta em Belém e distribuída para a 5ª vara cível. Quatro dias depois, numa tramitação de rapidez rara e surpreendente para o procedimento padrão nesse caso, a juíza Vera Araújo expediu um memorando para que o Banco do Brasil “se abstenha de realizar qualquer movimentação” no valor de R$ 2,3 bilhões, “que se encontra depositado em contas junto a este banco” em nome do autor da ação, “até ulterior decisão”. Fixou em R$ 2 mil ao dia a multa em caso de descumprimento.
A juíza não aceitou reconsiderar sua decisão quando procurada por representante do Banco do Brasil, que lhe apresentou laudos e a decisão da justiça do DF, comprovando a fraude. O porta-voz do banco argumentou ainda que o saque e a transferência dos recursos favoreceriam uma quadrilha interestadual especializada em golpes contra instituições financeiras. Com base na mesma exposição, a corregedora nacional de justiça determinou de imediato a suspensão da decisão.
Ao ser questionada pelo banco, segundo a nota que a assessoria de comunicação do CNJ distribuiu, “a juíza alegou que não encontrava os papéis relativos ao processo e que ‘sofreu pressões de cima’, sem esclarecer de quem e por que motivo”. O processo teria sido extraviado.
Sem conseguir demover a juíza, o banco recorreu da decisão para o tribunal. O agravo foi distribuído para a desembargadora Gleide Pereira de Moura, da 1ª Câmara Cível Isolada, mas ela jurou suspeição. Por sorteio, o processo foi, no dia 7, para a desembargadora Marneide Merabet, que, dois dias depois, indeferiu o pedido do banco para, através de liminar, suspender os efeitos da decisão de 1º grau, mantendo a deliberação da juíza Vera Araújo. Só então, no dia 13 a magistrada pediu informações à sua colega da instância inferior.
O que o banco questionou e a ministra Eliana Calmon acolheu foi um dos princípios da justiça, a prudência. Sem instruir o processo, sem ouvir a outra parte, por meio de liminar, numa tramitação velocíssima, tanto a juíza quanto a desembargadora criaram a possibilidade de um saque bilionário em pleno período de recesso forense, iniciado no dia 20. Com a ordem judicial, os R$ 2,3 bilhões poderiam ser sacados e sumir, “até ulterior deliberação”.
Há mais de três anos, quando a trama foi revelada, suspeita-se de que por trás dessa ação está uma quadrilha audaciosa, embora ainda não identificada. O personagem principal, Francisco Nunes Pereira, é um homem de 47 anos, desempregado há vários anos, que mora em Tatuí, no interior de São Paulo, com um padrão de vida que em nada faz supor seja detentor de tanto dinheiro, capaz de transformá-lo num dos 20 homens mais ricos do país. Ele seria o ardiloso criador da fraude ou apenas o “laranja” à frente dos verdadeiros autores.
O espantoso é que, passado tanto tempo, a possibilidade de um golpe com tal alcance não tenha motivado as autoridades públicas competentes a dedicar um pouco do seu escasso tempo para desvendar o mistério. Nem mesmo depois que a primeira ação foi extinta na justiça do Distrito Federal. Só agora as investigações serão iniciadas, com a remessa dos autos pela Corregedoria do CNJ para a Polícia Federal e o Ministério público Federal.
Se for provada a hipótese até agora mais provável, da tentativa de sacar ilicitamente um valor que equivale a 20% de todo o orçamento do Estado do Pará para o próximo ano, qual a participação dos magistrados paraenses na trama? Erro por ingenuidade ou conivência? Grave erro de ofício ou cumplicidade em algum tipo de fraude, com crime de peculato ou qualquer outro? Pela primeira vez um magistrado do Pará aparecerá diante do público algemado?
De qualquer forma, mais um escândalo nacional envolvendo a justiça do Pará. Só que, desta vez, o âmbito da apuração não será mais estadual, no qual as punições são brandas, quando são aplicadas. Desde a comprovação dos saques que a então juíza Ana Tereza Murrieta praticava nas contas judiciais sob sua guarda, os sucessivos casos de irregularidades e ilegalidades podiam ser tomados como alertas de uma tendência de agravamento. No entanto, a juíza foi promovida a desembargadora por merecimento. Quando aposentada, foi para casa com salário milionário. E mesmo condenada, continua solta, recorrendo em liberdade.
O CNJ já aposentou compulsoriamente a juíza Clarice Andrade, responsabilizando-a pela permanência de uma menor em cárcere coletivo de homens, onde foi submetida a violências. Já a juíza Maria Edwiges de Miranda Lobato, que, no ano passado, mandou soltar um perigoso traficante de drogas dois dias depois que outro juiz, Eric Peixoto, negou a liberdade do réu, preso pela polícia depois de longas diligências, recebeu apenas censura por escrito. O processo contra a juíza criminal Sarah Castelo Branco, que foi ao presídio soltar um preso, também avança por gravidade, se avança.
Sob questionamento de colegas, a titular da 16ª vara penal de Belém, especializada em crimes de imprensa, pediu contagem de tempo e foi apresentada no topo das mais antigas magistradas, ao lado justamente de Vera Araújo de Souza. Não se sabe se para pedir aposentadoria ou tentar subir ao desembargo, seguindo o exemplo da colega Tereza Murrieta.
Um comentário:
Primeiro, foi a lei da ficha limpa, que atropelou os princípios mais elementares do direito só para "pegar" o Roriz e acabou "pegando" o Jader e o Paulo Rocha (afinal, era uma "boa causa"). Agora o CNJ usurpa a competência jurisdicional que a Constituição jamais lhe outorgou, para revogar uma decisão judicial recorrível, em nome de uma suposta "moralidade". Se é assim, cada um de nós, cidadãos, também temos o mesmo direito da Eliana Calmon de tornar sem efeito qualquer decisão emanada de qualquer um dos Três Poderes e, inclusive, descumprir qualquer lei, se acharmos que ferem a moraliodade ou os "bons costumes", segundo os nossos pontos de vista. Agorinha mesmo, de acordo com o seu peculiar conceito de "moralidade" e "bem comum", o Chávez obrigou o Congresso venezuelano a delegar-lhe poderes para lgislar sem ouvir... a Casa encarregada de aprovar as leis! Onde é que vamos parar? Até quado veremos serem levados as flores, os vizinhos, os negros, os judeus, os comunistas, etc, sem que nos importemos, até chegar a nossa vez de sermos levados, quando não haverá mais ninguém para se importar?
Postar um comentário