domingo, 6 de fevereiro de 2011

A sonegação fiscal: o papel da imprensa


Lúcio Flávio Pinto:
Belém- Em 2009 a Receita Federal apreendeu na Amazônia mercadorias sem nota fiscal no valor de 13,6 milhões de reais, em 130 operações, sendo R$ R$ 4 milhões no Pará (em 56 operações). No ano passado, as apreensões na região Norte somaram R$ 22 milhões (mais 61,9%), em 175 operações. Quase metade do valor apreendido, R$ 10 milhões (em 94 operações), aconteceu no Pará, com um crescimento notável de 150%.

Apesar desses resultados, que superaram os obtidos em qualquer outra região do país, a Receita não tem dúvida: o índice de sonegação fiscal na Amazônia é o maior do país e o Pará é líder nacional. Embora pouco representativo em termos absolutos, o índice é preocupante.

O que os fiscais apreendem representa apenas uma pequena parcela do imposto não recolhido. O superintendente Esdras Enarriaga diz que a grande sonegação resulta do hábito arraigado dos habitantes da região de não pedir nota fiscal em suas compras e despesas. Esse costume facilita a ação dos sonegadores, estimulando a manutenção dessa cultura, que tem suas origens históricas no intenso contrabando praticado em Belém nos anos 1950/60. Evoluindo para a pirataria e para o tráfico.

Daí vem a permissividade social, que deve ser combatida para que, aumentando a receita dos impostos nas transações econômicas, haja, pelo menos em tese (a ser transformada em realidade pela decidida atuação dos cidadãos), mais recursos para o governo aplicar em benefício da sociedade.

Nesse contexto, é bastante exemplificativo – e de efeito pedagógico – um processo que tramita pela 9ª vara cível de Belém. No dia 17, a juíza Rosana Canela Bastos, que responde pela vara, concedeu tutela antecipada numa ação de indenização por dano moral proposta pelo auditor fiscal Rogério Dantas Reis, chefe da equipe de vigilância aduaneira da alfândega do porto de Belém.

A antecipação judicial foi para que o Diário do Pará garanta o exercício do direito de resposta do autor. O jornal não publicou a carta que o servidor público lhe encaminhou a propósito de uma nota publicada na coluna de Mauro Bonna, no caderno Negócios. Além de não publicar a resposta, o jornalista a comentou e contestou em termos irônicos e duros.

Já a observação inicial fora sarcástica, além de unilateral: dava voz às agências de turismo, provavelmente contrariadas pela atuação da Receita Federal, sem apresentar o outro lado da questão. O auditor certamente não teria recorrido à justiça em defesa dos seus direitos se sua resposta tivesse sido publicada. O jornal nada perderia se a reproduzisse. Pelo contrário, prestaria informações relevantes aos seus leitores.

A imprensa paraense precisa acabar com essa mania de se considerar ofendida quando criticada e não admitir seus erros. O direito de resposta é sagrado. Constitui um dos elementos de legitimidade da própria imprensa, assegurando o valor que ela tem para a manutenção do regime democrático justamente por sua permeabilidade à divergência, à controvérsia, às versões e à pluralidade de opinião.

O episódio serve à perfeição para que os jornalistas e o público percebam a dimensão que a imprensa assume como um quarto poder saudável, quando se coloca como intérprete, fiadora, auditora e porta-voz da sociedade. Sobretudo quando é posta diante de um tema de enorme relevância pública, como a sonegação fiscal e o contrabando. Por isso, reproduzo os elementos desse processo.

O primeiro documento é a nota inicial que, sob o título “Receita Federal afugenta turistas”, Mauro Bonna publicou na sua coluna:
“Era só o que faltava. Muita gente empenhada em incrementar o turismo para gerar emprego e renda. Eis que de repente surge um auditor fiscal da Receita Federal, Rogério Reis, e põe quase tudo a perder. Estamos em meio à maior temporada de cruzeiros na região e, justo agora, o auditor decidiu que não haverá desembarque de passageiros em pontos não alfandegados.

Na semana passada, os 600 velhinhos milionários, passageiros do ‘The World’, não puderam desembarcar na Estação. A operação ocorreu no Armazém 4, sem ancoradouro, um risco total. Estão também proibidos desembarques no trapiche de Icoaraci e até na bela Alter-do-Chão, áreas não alfandegadas. É o fim!”

A Receita Federal, saindo em defesa do seu auditor. respondeu com uma nota, redigida de tal forma a poder ser publicada como texto jornalístico: 
“Cruzeiros: Realidade dos Fatos 
A Receita Federal também está empenhada em incrementar o turismo no Pará, mas lembra ao trade e aos interessados em geral que é preciso cumprir a lei. O chefe da equipe de Vigilância Aduaneira do Porto de Belém, auditor fiscal Rogério Reis esclarece que em portos não alfandegados, como é o caso da Estação das Docas e do trapiche de Icoaraci, o desembarque de turistas oriundos do exterior não é permitido. E a proibição não é do auditor. Trata-se de norma estabelecida pelo decreto-lei nº 37, de 1966, e pelo decreto nº 6.759, de 2009.

No caso do navio ‘The World’, vindo das Bahamas e exclusivo para passageiros de ata renda, a embarcação não estava lotada quando passou por Belém há cerca de duas semanas, ao contrário do que foi noticiado; tinha apenas 59 passageiros, e não 600, e apenas 13 foram fiscalizados porque desembarcaram na cidade para pegar avião em Val-de-Cans. Os demais, em trânsito, puderam, sim, passear pela capital.

O alfandegamento de portos, lembra Rogério Reis, é feito pela Receita Federal, mas tem de ser solicitado, necessariamente, pelas partes interessadas. Nesse sentido, ele lembra que o trade deveria ter sido mais previdente nesta grande temporada de cruzeiros na região e pedido, com a antecedência necessária, o alfandegamento dos portos de sua preferência. ‘Pessoalmente não tenho nada contra o desembarque de passageiros na Estação das Docas, por exemplo, mas isso tem de ser feito de forma legalizada. Você acha que nos Estados Unidos, por exemplo, é permitido esse tipo de desembarque em algum porto não alfandegado? Nunca. Lá ninguém brinca com isso’, argumenta o auditor.

Além da Legalidade – O procedimento de alfandegamento não é uma mera formalidade legal. Nele há uma avaliação feita por uma comissão de servidores da Receita Federal visando atestar a existência de estrutura mínima que garanta a privacidade dos passageiros e a segurança para execução da fiscalização. Estes navios de cruzeiro trazem, além de passageiros milionários, mais de 200 tripulantes que em muitos casos são jovens contratados temporariamente durante a alta estação. As apreensões realizadas pela Receita Federal comprovam que os contrabandistas contratam jovens, idosos e até deficientes físicos para ingressarem no país trazendo armas e drogas.

É triste perceber que alguns setores da sociedade ainda não se conscientizaram deste risco. Tanto aqui quanto em qualquer país civilizado do mundo a fiscalização é necessária à segurança de toda a sociedade”.

O jornalista leu a nota (e só ele), mas, ao invés de também reproduzi-la, partilhando-a com seus leitores, reagiu com uma contestação na sua coluna:
“Com uma série de agentes legalistas, a Receita Federal no Pará tenta explicar a proibição do desembarque de passageiros de navios de cruzeiros no flutuante da Estação, com o velho e não aplicável papo de alfandegamento.

Primeiro: os navios não aportam em Belém por questões de calado e ficam no Canal Minas Gerais, ao largo. Os passageiros, sem malas, descem em pequenas embarcações para um dia de visita à cidade. Segundo: até novembro, milhares de passageiros desembarcaram sem problemas na Estação. Onde estavam os diligentes inspetores? Inspetores talentosos para a fronteira Agora no meio da temporada de cruzeiros, a Receita Federal alega o cumprimento de uma legislação de alfandegamento de 67, para impedir o óbvio, o razoável, o bom senso. Cá para nós, é estratégia midiática em busca de autopromoção. O trade deveria mandar correspondência a Guido Mantega sugerindo o aproveitamento desses jovens e impetuosos inspetores em Foz do Iguaçu, para impedir com seus talentos a entrada principalmente de armas contrabandeadas. Serviriam bem melhor ao Brasil e apareceriam muito mais”.

Liminarmente a juíza em exercício da 9ª vara já concedeu o direito de resposta, aplicando a multa de cinco mil reais por cada domingo em que a nota da Receita Federal não for publicada, até o limite de R$ 50 mil, multa que será creditada ao autor da ação.  Deixou para examinar o mérito, sobre o cabimento do direito à indenização por dano moral, para depois da instrução do processo. O Diário do Pará poderá contestar a decisão e certamente não reconhecerá o dano moral.

Uma desgastante ação judicial, que podia ser evitada, ainda poderá ser abreviada se o jornal reconhecer algo que é sua obrigação indeclinável: reconhecer o direito de resposta do personagem da história. Direito irrecusável e sagrado. Ou então a imprensa não é um dos pilares da democracia, conforme pensa e proclama.

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Próximo artigo do autor: Maiorana: agora, no meio da rua

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