Lúcio Flávio Pinto
O peruano Mário Vargas Llosa é um dos maiores escritores de todos os tempos na América do Sul e um dos mais importantes em atividade no mundo. Seu prêmio Nobel de Literatura foi justo e merecido. Escreveu muito, sempre em alto nível de qualidade e com muita diversidade. Desde Conversa na Catedral a Pantaleão e as Visitadoras, Batismo de Fogo (na tradução da 1ª edição em português) até A Guerra no Fim-do-Mundo, que muito crítico desdenhou, mas está à altura do seu principal personagem, Euclides da Cunha. Isto em ficção. Em ensaios não desce um patamar sequer, ainda quando emite opiniões controversas ou duvidosas. Sabe escrever como poucos e dar grandeza aos temas que aborda. Como a maravilhosa crônica sobre um aristocrata peruano decadente que freqüenta livrarias em Paris. Uma elegia ao livro e àqueles que o cultivam.
Nada mais natural do que Llosa ter sido convidado para a abertura da Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, que será realizada no próximo mês. Sua presença dignificaria a promoção. Feito o anúncio, porém, começaram a agir os censores ex-officio de esquerda. Llosa deveria ser “desconvidado” porque não é adepto da “corrente que abriga a sociedade argentina”, por ser messiânico, antiperonista e crítico da dinastia Kirchner no poder. Além disso, é um fracassado: foi derrotado na eleição para presidente do Peru, em 1990.
Santa derrota. Talvez Vargas Llosa não viesse a ser um bom presidente. Mas um excelente escritor ele continuou a ser depois do “fracasso”. Seu mais recente livro de ensaios, Sabres e Utopias, é um primor. Aprende-se até discordando frontalmente dele, por sua inteligência, seu conhecimento e seu estilo.
O “desconvite” foi feito por ninguém menos do que o presidente da Biblioteca Nacional da Argentina, que devia ter discernimento sobre o significado do livro. Felizmente para a tradição intelectual argentina, a presidente Cristina Kirchner teve um gesto de grandeza: cancelou a mesquinha e burra iniciativa do presidente da Biblioteca, fazendo-o desfazer o ato iníquo. Kirchner ia se juntar aos militares da ditadura, que em 1970 censuraram os livros de Llosa.
A principal função do intelectual – hoje e sempre – é estar longe do poder e o mais próximo dos seres humanos, dos cidadãos comuns, seus clientes e patrões. Da humanidade, em sentido genérico, para não condicionar sua criação às expectativas de consumo e aceitação. O grande desafio para o intelectual é justamente a postura em relação ao poder, quando o lugar é ocupado por companheiros de viagem. Há a tendência a se satisfazer com a realização dos sonhos de chegar ao topo do processo decisório, ensarilhar as armas (sempre configuradas em idéias) e se entregar ao usufruto.
Foi o que aconteceu com os intelectuais de esquerda a partir da chegada de Lula ao poder. Vários deles, alertas para o olho clínico do tempo, quiseram manter estandartes e fantasias de independentes e críticos, mas com um bastão de comando nas mãos ou uma sinecura no bolso. Para manter os críticos verdadeiros e os cobradores de posições à distância, usam os antigos conceitos morais da esquerda, monopolista do direito de uso das bandeiras éticas, como metralhadora giratória. Procuram atingir quem estiver do outro lado, mas no raio de ação dos seus conceitos.
É o que faz o sociólogo Emir Sader. Ídolo de certa faixa da esquerda e de uma ala do PT, ele se considera um ícone da verdade. Antes de assumir a presidência da Casa de Rui Barbosa, depois de não ter conseguido ser ministro da cultura, criticou sua chefa, colocada no cargo pela turma de Dilma Rousseff (e não pelos remanescentes de Lula), Ana Buarque de Holanda, cujo maior atributo é ser irmã de Chico, aquele um. Crítica ferina, deselegante e aética. De tão imóvel, a ministra seria “quase autista”, sentenciou Emir.
Não havia outro caminho que não o do “desconvite”. Ao contrário da grosseria praticada contra Llosa por arbítrio de um Torquemada portenho, no caso brasileiro era a única providência a adotar. Se aceitasse a afronta, a ministra encolheria e o seu agressor cresceria a tal ponto que podia até cometer a inconseqüência de mudar a razão de ser da Casa de Rui Barbosa, há mais de 80 anos centro de acumulação e processamento de documentação, de acervos e coleções, orientados para uma pesquisa especializada de profundidade e amplitude, para o direito público e a literatura.
Sader queria transformar a Casa de Rui numa versão refinada do Teatro Casa Grande. Garante ele que foi num debate que coordenou no ano passado no Casa Grande, no Rio de Janeiro, que a campanha em favor de Dilma Rousseff deslanchou de vez, graças ao apoio de artistas e intelectuais que ali compareceram. Além de um atestado de egocentrismo sem fundamento, é uma afronta aos fatos. Quem elegeu Dilma foi Lula. A conta da vitória já foi jogada sobre os peitos da presidente – e ela está podendo avaliar agora como essa conta pesa. Não tem nada a ver com intelectuais e artistas.
Se estivesse com bons propósitos e de boa fé, Emir Sader teria procedido de outra forma. Talvez ele tenha pretendido mesmo é abrilhantar seu luzidio currículo, não enfrentar o trabalho que ia lhe ser entregue se fosse empossado, se credenciar à reparação da agressão e continuar na posição iconoclasta bem arrimada(e arrumada). No poder, é claro. Quanto mais próximo está do poder, menos intelectual o intelectual é. Os dois casos comprovam.
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