Lúcio Flávio Pinto
Em três dias de julho de 1969, três das principais emissoras de televisão do Brasil pegaram fogo. Primeiro foi o estúdio Paramount da TV Record, o quinto incêndio em duas décadas da terceira mais antiga emissora do país. No mesmo dia, pegou fogo o estúdio paulista da TV Globo, em seu quarto ano de existência. Dois dias depois era a vez da Bandeirantes, de propriedade do ex-governador Adhemar de Barros, que fora ao ar apenas dois anos antes.
Mera coincidência ou os três sinistros resultavam de atentados políticos? As três empresas de comunicação apoiavam o regime militar. Sete meses antes, o governo de exceção havia endurecido de vez com a proclamação do AI-5, pondo fim ao que restava de liberdades públicas ainda permitidas pelo golpe de 1964.
A resistência à ditadura trocara o parlamento e a tribuna pela luta armada, a guerrilha rural e os atentados urbanos. Paulo Machado, que pertencia “à elite empresarial de São Paulo”, apoiara discretamente o golpe militar de 64 “e tinha pavor de comunistas”. Podia, pois, ser visto como um alvo.
Por considerar frágil a segurança nas empresas de comunicação, a Federação das Indústrias lançou um comunicado pedindo “a união das Forças Armadas com o empresariado paulista em torno da luta contra o terrorismo”. Seria “o primeiro grande passo para o fortalecimento da Operação Bandeirantes”, a Oban, o braço armado da repressão à esqueda e toda e qualquer forma de oposição.
Por ironia (e também por acaso?), essa nova situação favoreceria muito um delegado de quinta categoria da polícia civil, que assumira dois anos antes a chefia da segurança da Record e dava proteção particular ao detentor do maior salário de então, o cantor Roberto Carlos.
Sérgio Paranhos Fleury já dera um pulo na hierarquia ao criar o Esquadrão da Morte, para eliminar sumariamente bandidos comuns. O salto foi maior quando se especializou na polícia política, tornando-se o policial mais temido e violento. Teve que deixar o “bico” na televisão para dedicar-se por inteiro à caça aos esquerdistas. Na Record, porém, “ninguém reclamou”. Esteve presente aos “acidentes” por mera circunstância, ou haveria algo mais nessa coincidência?
Surpreendentemente, essa história insólita é pouco lembrada. Ela reaparece no livro O Marechal da Vitória (A Girafa, 362 páginas, 2005), dos jornalistas Tom Cardoso e Roberto Rockmann. Mas com uma superficialidade e rapidez incompatíveis com a importância do episódio, mal explicado até hoje. Mesmo assim, demarcou uma das transições mais importantes na mutação do regime militar, que durou de 1964 a 1985.
As aparências sugerem que os incêndios não foram acidentais e que resultaram de uma represália dos grupos de esquerda contra a grande imprensa, ontem como hoje associada a golpes militares (ultimamente, mesmo durante o período de mais longa democracia de toda República, apelidada de PIG – Partido da Imprensa Golpísta). Mas se a intenção foi abalar o suporte de comunicação de massa da ditadura, seu efeito foi distinto – e até imprevisto.
Para a Record, o quinto incêndio em 20 anos e o terceiro no intervalo de apenas seis meses, foi fatal. A empresa ainda sobreviveria por alguns anos, mas desbancada da liderança para posições cada vez mais baixas. Talvez a decadência ocorresse independentemente dos sinistros. Radicalmente familiar, as Emissoras Unidas não se profissionalizaram nem se renovaram para enfrentar os novos tempos.
Desde 1931, quando Paulo Machado de Carvalho comprou a Rádio Record, que fora ao ar três anos antes e cinco depois da primeira emissora radiofônica brasileira, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, de. Roquette Pinto, tudo dependia do talento e das decisões do dono. Ele costumava acertar, com seu faro para contratar talentos e impor um padrão de qualidade à rádio e, a partir de 1954, à sua televisão, a terceira. Mas tinha idiossincrasias difíceis de explicar e muito menos ainda de aceitar.
A superstição e a teimosia explicavam a resistência de Paulo de Almeida Machado a contratar seguro para suas empresas, depois da freqüência preocupante dos incêndios. Como fora enganado uma primeira vez, aboliu essa proteção das suas considerações. Muito mais racional e pragmático, Roberto Marinho se acercou de cuidados em torno da sua engatinhante TV Globo. Por isso, quando as chamas devoraram o estúdio paulistano, ele tinha motivos para ficar satisfeito pelo incidente: o seguro iria capitalizá-lo num momento difícil.
“Ninguém abriu champanhe publicamente, mas a diretoria da TV Globo sabia que, com a fortuna paga pelo seguro, a emissora poderia dar mais um grande passo para desbancar de vez a concorrência”. Admitiu Walter Clark, na autobiografia Campeão de audiência. Quase 7 milhões de dólares entraram nos cofres esvaziados da Globo.Já a
Record não tinha como acompanhar o salto da sua competidora.
Em 1º de setembro de 1969, quatro anos depois de entrar no ar, a Globo transmitiu para todo país, via satélite, o Jornal Nacional, o primeiro programa verdadeiramente nacional, “ao vivo”. As Emissoras Unidas estiveram bem próximas dessa façanha, mas ficaram privadas por uma série de circunstâncias, inclusive a falta de apoio do governo, que, a partir daí, não faltaria a Roberto Marinho.
Ele seria escolhido para falar pelo regime e regiamente recompensado por essa missão. Sobreviveria aos pioneiros da radiodifusão, que desapareceriam a partir daí, junto com suas emissoras. Pipa Amaral e sua TV Rio (lhe restaria a Rádio Jovem Pan). Assis Chateaubriand, que morreria em 1968, depois de longa doença, precipitando a decadência dos seus inconfiáveis Diários e Emissoras Associados. Mário Wallace Simonsen, que pagaria caro (com a TV Excelsior e a Panair) por suas relações com o presidente João Goulart, cuja eleição financiara. Victor Costa, morreu em 1960 sem testemunhar a decadência da TV Paulista.
Ruía também o império de comunicações que Paulo de Almeida Machado constituíra, “valendo-se basicamente de duas de suas maiores virtudes: a capacidade de liderança e a coragem”. Logo ele ficava atrás do SBT, criado por Sílvio Santos em 1981. Descapitalizado, em 1988 vendeu a Record para a Igreja Universal do Reino de Deus, “a mais bem-sucedida arrecadadora de dízimos do planeta”, por 45 milhões de dólares. Quatro anos depois morria, aos 91 anos, no ostracismo.
Para a minha geração, porém, Paulo de Almeida Machado foi uma legenda. Tanto por sua atuação na área de comunicação como pela sua condição de cartola do futebol, um raro e já extinto espécime de dirigente de clube esportivo e comandante da seleção brasileira, a pátria em chuteiras, como dizia Nélson Rodrigues. Depois de ter dado ao decepcionante São Paulo quatro títulos nos anos de 1940, foi o marechal do bicampeonato mundial (1958 e 1962), dando a impressão de não passar de torcedor, ao lado dos outros torcedores e dos jogadores.
Um medalhão, em todos os sentidos (inclusive da nobiliarquia familiar, filho de uma baronesa de quatrocentona estirpe paulista), que era também povo numa época de futebol alegre e desprendido. Na qual não havia o politicamente correto e o fabuloso Didi podia tomar calmantes receitados pelo médico e De Sordi fumar um cigarro atrás do outro sem ser repreendido.
Imaginava encontrar um perfil à altura do personagem e respostas às muitas dúvidas que gravitavam em torno de Paulo Machado de Carvalho e suas realizações. Como bons jornalistas, os autores do livro juntam muitas informações e o que escrevem pode ser lido com prazer. Mas sua obra não incorpora as conquistas acadêmicas de jornalistas que foram além da crônica dos fatos para examinar contextos e sondar interpretações, como têm feito nos últimos anos. Graças à facilidade na narrativa dos acontecimentos, deram um tom mais saboroso ao ritmo pedestre e pedregoso da historiografia nacional.
Tom Cardoso, com 33 anos, e Roberto Rockmann, com 28 na época em que o livro foi publicado, limitam-se às qualidades do jornalismo cronológico e restaurador de episódios. Sua pesquisa se limitou a consulta bibliográfica e entrevistas pessoais, sem maior aprofundamento, o que pode explicar erros grosseiros, como o cometido com a revolta tenentista comandada pelo general Isidoro Dias Lopes, em 1924. Dizem que em um mês, “os tenentistas foram expulsos da cidade pelas forças de Getúlio Vargas”, seis antes de o caudilho gaúcho tomar o poder, com a revolução de 1930, efeito da agitação tenentista iniciada em 1922.
O livro de Tom e Roberto é um avanço na reconstituição da história combinada das comunicações e do futebol no Brasil. Onde ficou, entretanto, ainda é um ponto distante do conhecimento adequado sobre o tema.
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