domingo, 14 de agosto de 2011

A dignidade do presidente Allende: uma semente para o futuro


Lúcio Flávio Pinto


A morte do presidente chileno Salvador Allende Gossens completará 38 anos no próximo mês. Por coincidência, um dos aspectos mais relevantes dessa história acaba de ser definitivamente esclarecido: Allende se suicidou mesmo, conforme o resultado dos exames feitos no seu cadáver, anunciados no mês passado.

Este já não era mais um fato polêmico. De início, chegou a ser apregoado como verdade que ele fora morto ao ser deposto por um golpe militar. O poeta e embaixador Pablo Neruda (o único chileno Prêmio Nobel de Literatura, junto com Gabriela Mistral), seu amigo pessoal, difundiu a versão do assassinato. E morreu logo depois, de causas naturais, ainda que também postas imediatamente em dúvida por uma dessas teorias conspirativas, sempre em curso.

A versão da execução foi desautorizada pela reconstituição dos acontecimentos naquele traumático dia 10 de setembro de 1973, em Santiago do Chile. A família, que já estava convencida da verdade, solicitou um exame do cadáver apenas para colocar um selo oficial – e final – sobre esse capítulo importante da história do Chile, da América do Sul e do mundo. Para todos os fins de direito e de posteridade.

O significado atribuído ao episódio não é exagerado. Allende se considerava marxista, mas rejeitou a conquista do poder através da ditadura do proletariado, a fórmula ortodoxa da passagem do capitalismo ao socialismo, através de parto violento (embora Marx tenha terminado seus dias à direita da interpretação sectária das suas idéias, o que o levou à frase codificada: “se isso é marxismo, então eu não sou marxista”). Os italianos também saíram dessa bitola bolchevique, melhor desenvolvida (para pior efeito) por Lênin, mas só Allende chegou ao poder nacional.

Isto, depois de perder três eleições presidenciais seguidas (como Lula, no Brasil – e aí se exaure a coincidência). Na segunda eleição, quando ainda era um fenômeno pouco conhecido, Allende podia ter tido uma vitória mais fácil (oportunidade que se ofereceu a Lula diante de Collor, em 1989, mas ele a desperdiçou, talvez por mais uma intervenção salvadora da sua formidável estrela, embora ao país a alternativa tenha se revelado desastrosa de qualquer modo). A quarta disputa foi duríssima. Como não atingiu os 50% dos votos para a posse automática (ficou com 36,5%, contra 35% do democrata-cristão conservador Jorge Alessandri), sua vitória teve que ser submetida a referendo do Congresso Nacional.

O governo Richard Nixon tentou impedir à força esse reconhecimento, tradição inviolável na democracia chilena, que era a mais duradoura do continente (protegida dos pronunciamentos militares latino-americanos por uma tradição que o tempo iria corroer, sem que os políticos percebessem). Até um respeitado chefe do estado-maior do exército, o general René Schneider, foi assassinado no complô montado pela CIA (a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos) para cortar o caminho de Allende. Mas sua trajetória política falou mais alto e ele foi empossado.

No entanto, quase não pôde governar. Enfrentou um poderoso locaute de patrões, que tinha seu ponto forte na paralisação do transporte rodoviário, a espinha dorsal da vida num país tão extenso. Até médicos faziam greve política, deixando de atender a população (embora recebessem clientes particulares, que pagavam, em seus gabinetes e clínicas) O boicote só se sustentou porque verba secreta americana o alimentou. Ainda assim, Allende se manteve nos parâmetros institucionais até o fim.

Ele podia ter endossado a solução armada da esquerda radical, sobretudo do Mir, adepto do “foco” revolucionário à Che Guevara (um fracasso fora de Cuba). Mas se não a reprimiu, por seus integrantes serem companheiros de viagem, não lhes deu os mecanismos para viabilizar a fórmula tradicional do marxismo, que tem resultado em tiranias de esquerda.

Não deixou de cumprir seu programa de nacionalizações e estatizações, que tanta contrariedade causou aos Estados Unidos e um ódio particular – e rudimentar, raivoso – ao presidente Nixon, confirmado por seus assessores mais próximos (como o seu advogado pessoal, John Dean, autor de um retrato devastador do governo mais parecido ao do seu chefe desde então, o de George W. Bush e Dick Chenney, que considerou Pior do que Watergate, livro publicado em 2004 e disponibilizado em português pela editora Francis).
Allende podia ter fugido dos militares que se mobilizaram para depô-lo. Podia também ter convocado seus seguidores à resistência. Sua última mensagem, pelo rádio, já cercado em palácio, foi de desmobilização da resistência, o que provocou a ira dos radicais.

Dada a senha para um possível entendimento posterior, que evitasse a sangria desatada da ditadura Pinochet, teve o gesto altivo de permanecer no Palácio La Moneda, sob bombardeio da força aérea, e deixar seu cadáver como butim para os invasores da sede do poder nacional. A violência da repressão que se seguiu foi tão brutal que esse gesto não teve o valor simbólico esperado. Não virou bandeira de luta. O Chile raspou esse episódio da sua história imediata e partiu para uma solução associada aos EUA, que, graças à cultura do seu povo e à engrenagem social e econômica mantida, resultou no único caso duradouro de crescimento de todas as ditaduras instauradas no continente nesse período.

Costuma-se dizer que um acontecimento só se torna histórico depois de meio século de transcurso. O golpe que depôs Allende e o levou ao suicídio está a caminho desse formalismo. Mas, com 38 anos, não devia mais provocar tantas paixões e absurdos, como os apresentados em várias das mensagens de leitores da coluna que escrevi no site do Yahoo, reprodução quase integral do artigo que saiu neste jornal.

Qualquer que seja a opinião a respeito do governo da Unidade Popular (uma coligação de partidos liderada pelo socialista) e do seu maior líder, a biografia de Allende se impõe às leviandades. Não requer aceitação, mas, por sua dignidade, cobra respeito.

Escrevi o artigo, usurpando a tarefa que me cabe naquele espaço no site, de falar sobre Amazônia & meio ambiente, porque acompanhei em Santiago as últimas três semanas de Allende, como enviado especial do jornal O Estado de S. Paulo. Conversei com ele e seus correligionários. Mas minha base era o jornal El Mercúrio, um dos baluartes da conspiração ilegal contra o presidente constitucional do país.

Vi muitas cenas desse drama com meus olhos, inclusive a movimentação dos agentes da CIA hospedados no hotel Carrera, em frente à sede da embaixada americana e do La Moneda, na rua Teatinos com a Praça da Constituição. Como eu sabia que era gente da CIA? Pelo seu comportamento sem disfarces, como se fossem agentes secretos da Pide portuguesa. Só faltava a identificação na lapela.

Escrevi o artigo para sugerir a uma editora brasileira a publicação de El dia em que murió Allende, de Ignacio Gonzalez Camus (nenhuma deu qualquer sinal de vida até agora). O livro é uma reconstituição detalhada e precisa dos preparativos e da consumação do golpe. Não tem adjetivações. Quem nos dera se os últimos momentos de Getúlio Vargas tivessem tido cronista igual. É um dos mais emocionantes relatos jornalísticos que já li. A riqueza de informações lhe dá calor e vivacidade, como se estivéssemos vivendo (ou revivendo) aqueles dias. Sem o detalhismo ficcional que levou Bob Woodward ao exotismo.

Para os que acham que a avaliação do governo Allende é uma distorção da esquerda, recomendo a leitura de dois livros. O primeiro é The last two years of Salvador Allende, publicado em 1985 nos Estados Unidos (pela Cornell University) e em 1990 no Brasil, pela Editora Civilização Brasileira. O autor é Nathaniel Davis, embaixador americano até sete semanas depois do golpe militar. São 520 páginas de um testemunho único.

O outro livro é The Pinochet File (A declassified dossier on atrocity and accountability), de Peter Kornbluh, publicado nos EUA pela primeira vez em 2003. Suas 587 páginas se baseiam em documentos oficiais do governo americano liberados pouco antes. Já devia ter sido traduzido para o português. Sepulta, na tumba da vilania, todas as mensagens injuriosas, desrespeitosas e desinformadas enviadas para a minha coluna na internet. E permite, a partir de fatos concretos, estabelecer uma base mínima para que a democracia continue a prosperar, afastando de vez a ressurgência de estados policiais na sociedade, dos quais o nazismo de Adolf Hitler foi o paroxismo.

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