Lúcio Flávio Pinto
Articulista de O Estado do Tapajós
Lewis I. “Scooter” Libby, chefe de gabinete do vice-presidente dos Estados Unidos, quase se tornou o primeiro funcionário graduado da Casa Branca a ser preso desde o escândalo de Watergate, três décadas antes. Ele só não foi para a cadeia porque seu chefe maior, o presidente George W. Bush, comutou sua pena, de 30 meses de prisão (sem poder impedir que ele pagasse 250 mil dólares de multa). O crime de Libby foi mentir e obstruir o Ministério Público na investigação sobre o vazamento de informações confidenciais. Só que, ao contrário do episódio de Watergate, a administração federal era a autora e não a vítima da divulgação de informação secreta.
A comparação entre os dois episódios serve para documentar as transformações que aconteceram no comando da mais poderosa nação do mundo, ainda a única superpotência, apesar do crescimento notável da China desde então. O que mais faz diferença é o poderio militar dos Estados Unidos. É o que permite ao país tomar decisões de repercussão internacional sem considerar qualquer outra parte, impondo seus interesses como lei de alcance geral.
Sobre esse poderio de destruição, muitos americanos se julgam em condições de abusar, de extrapolar qualquer regra e ignorar a coerência ou os compromissos, mesmo os da lei. A arrogância se tornou um elemento do modo de agir imperial da liderança dos EUA. Em 30 anos decorridos entre os maus feitos de Richard Nixon e os erros de George W. Bush, a América do Norte revela as fraquezas dessa forma imperiosa de agir.
O crime de “Scooter” Libby foi revelar a identidade secreta de uma agente da CIA, a Agência Central de Inteligência. Mas Valerie Plame Wilson não era o alvo final da inconfidência: o objetivo era atingir seu marido, Joseph Wilson, um ex-embaixador americano que se tornara consultor na área diplomática, militar e de inteligência, depois de se aposentar, em 1998, depois de 23 anos como servidor público. Joe voltara de duas missões secretas que a CIA lhe delegou – em 1999 e em 2002 – sem trazer as informações que interessavam à Casa Branca.
Bush queria uma base para atacar o Iraque. A guerra seria aceita pelo povo americano se ele pudesse apresentar, depois do ataque da Al Qaeda às Torres Gêmeas de Nova York e ao Pentágono, provas de que Saddam Hussein desenvolvia um programa clandestino de armas de destruição em massa. A prova buscada seria a compra de 500 toneladas de óxido de urânio (o yelllowcake), em Níger, na África Ocidental.
Joe foi ao país africano e voltou com conclusão oposta: nada sustentava a informação, que fora gerada originalmente no serviço secreto italiano e passara pelo congênere inglês, o M16. As jazidas de urânio de Níger estavam sob severo controle ocidental, a empresa mineradora era francesa, não havia testemunhos de negociações com emissários iraquianos e o transporte de 500 mil quilos de urânio pelo deserto não era operação que pudesse ser realizada sem deixar pistas.
A Casa Branca deixou de lado o relatório de Joe e foi atrás de uma fonte que pudesse se ajustar ao seu plano de invasão. Ela surgiu, afinal. E Bush leu 16 palavras falsas introduzidas no seu discurso sobre o Estado da Nação, o mais importante de todos, de 2003, que precedeu a invasão do Iraque. O ato se mostrou desastroso: a presunção de que o ditador Saddam Hussein tinha construído laboratórios clandestinos, fábricas e armas – químicas e nucleares – para destruição em larga escala se mostrou completamente sem fundamento.
Mas antes que a verdade se revelasse na prática, o discurso de Bush foi desmentido pela divulgação do conteúdo do relatório de Joe. O texto não deixava dúvida de que o presidente enganara deliberadamente a opinião pública americana. O circuito acadêmico, que gravita em torno da Casa Branca, formado por intelectuais de aluguel, ou obcecados pela carreira (e a renda), fornecera o substrato ideológico para o ato belicoso: os Estados Unidos, com a invasão, iriam promover a substituição de uma tirania oriental pela democracia ocidental made in USA. Mas também essa fantasia não se realizou. Nem poderia, considerados os hábitos e a história do Iraque.
Para evitar o descrédito do presidente e eventual aprofundamento da indagação sobre as razões ocultas da invasão desastrada, a Casa Branca se lançou contra o relatório de Wilson. À frente, o vice-presidente Dick Cheney, afastado temporariamente da Halliburton , uma das empresas com interesses no Iraque e beneficiária da guerra. Um dos seus assessores confidenciou a uma jornalista que Joe fora a Níger por indicação de sua esposa, que era agente secreta da CIA.
Tratava-se de um lance de nepotismo, que certamente desqualificava o relatório, embora o ex-embaixador tenha realizado a missão pro bono (sem cobrar nada, apenas com despesas pagas) e Níger, o segundo país mais pobre do mundo (lista a incluir Gabão e Namíbia, que também produzem urânio) não seja exatamente um destino turístico capaz de atrair mordomias.
Também ao contrário do procedimento da imprensa durante grande parte do episódio de Watergate, a jornalista se limitou a repassar aos seus leitores a informação, sem se preocupar em checá-la ou avaliar seu significado. O resultado é que, sem a cobertura que tinha até então, a carreira de 20 anos na CIA de Valerie estava destruída e ela viu-se obrigada a pedir demissão. Foi a primeira vez que o governo americano agia dessa forma, sacrificando um agente secreto por conveniências políticas domésticas, a serviço de interesses pessoais de ocupantes do topo da hierarquia do país.
A imprensa participou decisivamente do jogo de poder, mas agora não contra o presidente, mas a seu favor, fazendo o que queria, dando forma às suas inconfidências, colocando no ar seus balões de ensaio. Até um dos heróis de Watergate, o repórter Bob Woodward, do Washington Post, se deixou seduzir pelo encantador de serpentes.
Jogo de Poder – Como uma espiã do alto escalão da CIA foi traída pelo seu próprio governo, é a resposta que Valerie Wilson procurou dar ao golpe que recebeu (ela própria nega ter sido espiã do “alto escalão”). O livro, publicado em 2007 nos EUA, saiu só agora no Brasil (Seoman, 430 páginas), já tendo passado pela devida versão cinematográfica à Hollywood. Deve ser lido com atenção – e, certamente, com muito proveito. É um trabalho em coautoria declarada (com Laura Rozen, “repórter de segurança nacional em Washington”, especialidade jornalística que devia servir de inspiração para a imprensa brasileira) e também não assumida.
Isso porque a CIA censurou 161 das 310 páginas sobre as quais teve ingerência. Às vezes fazendo corte de uma palavra ou de algumas linhas, mas chegando a suprimir por inteiro quatro páginas seguidas do livro, com o relato de Valerie sobre o início da guerra no Iraque. Acho que consegui decifrar algumas palavras, mas, a partir de certo momento da leitura, o que me espantou foi não ter nenhuma especulação sobre a razão da interferência do serviço secreto. Quando abusa, a censura chega ao paroxismo da destruição.
Sou da geração de jornalistas que precisaram lidar com censores do governo na redação e tiveram que contemplar o jornal do dia seguinte com artifícios para preencher o vácuo criado pela mão pesada do censor (versos de Camões, receitas culinárias ou diabinhos). Mas nunca tinha visto um livro com páginas e mais páginas cobertas pela tarja preta, como o da ex-agente secreta da CIA. Só o impacto dessa experiência já justifica a compra (por 40 reais) do livro – e guardá-lo como testemunho de época.
Eu já lera os livros de dois ex-agentes da CIA que marcaram época décadas antes: Victor Marchetti e, sobretudo, Philip Agee, que teria até revelado nomes de colegas agentes secretos, causando dano à segurança nacional dos EUA (o que ele provou não ter acontecido). A proliferação de tarja preta e a ausência de plausibilidade e critérios para vários desses atos de censura confirmam uma das teses de Valerie: a politização da inteligência americana.
Ao invés de fornecer informações reais, extraídas de campo, boa parte da comunidade de segurança passou a responder às demandas dos seus superiores (e, em especial, da Casa Branca), suprindo-a daquilo que ela reclamava para justificar suas ações. Quando esse voluntarismo não é atendido, surgem situações como a que levou à delação da agente secreta. Daí também os erros monumentais que os Estados Unidos têm cometido, a despeito do seu enorme potencial – em recursos, tecnologia e material humano – para obter informações fidedignas.
Ao manipular informações, o governo não age como um Behemoth no caos e na anarquia: as razões de Estado são o biombo para atender interesses corporativos, políticos e pessoais. Além do prejuízo que essa tendenciosidade causa ao povo americano, também atinge outras nações. Não poderia ser de outra forma, já que os EUA continuam a ser os únicos atores globais, com poder suficiente para causar mudanças em escala internacional. Seus erros têm um peso sem igual. Ainda mais quando resultam de ato deliberado, consciente.
Essa contradição fomenta todos os tipos de interpretações, mesmo as mais fabulistas, como a que considera os ataques da Al Qaeda a alvos estratégicos no território americano engendrados (ou endossados) dentro do próprio governo, como uma versão – ampliada e agravada – do que aconteceu com o casal Wilson.
O que está fora do alcance de pessoas inescrupulosas quando elas sentam numa cadeira com acesso a tantos mecanismos de poder? O advogado John Dean, que foi consultor pessoal de Richard Nixon e um dos protagonistas de Watergate, considerou a administração Bush muito pior. Felizmente, seu livro não foi censurado, como muitos outros publicados nos Estados Unidos desde o 11 de setembro de 2001 (infelizmente, poucos traduzidos no Brasil). O império está muito ferido, mas não se pode garantir ainda em que nível de gravidade, para o bem ou para o mal.
A poderosa editora Simon & Schuster não aceitou que a CIA impedisse o livro de vir a público e assumiu uma batalha judicial contra a censura, que não impediu os cortes, mas também não deixou que eles tivessem desnaturado a obra. O contrário do procedimento da Planeta em relação à biografia de Roberto Carlos: o veto do biografado foi aceito e o papel do livro refilado para uso menos nobre. Além disso, colegas de Valerie na CIA e grupos civis endossaram a causa dela, ajudando-a a manter a bandeira tremulante. Na busca por seus direitos, a ex-agente (menos poderosa do que apregoa o subtítulo do livro) desafiou a grande imprensa e seus cavaleiros.
Ela reserva sarcasmo e ironia a Woodward quando o define como “exaltado repórter” e “prolífico escritor”, apontando os procedimentos que adotou para se livrar do chamado em juízo e a ocultação de sua responsabilidade na criação de boatos. Ao saber do “depoimento inescrupuloso e tardio” do jornalista, Valerie diz que ficou “profundamente decepcionada por ele ter resolvido reagir como jornalista, acima de qualquer outra coisa, e se comportar como cidadão responsável apenas quando sua fonte o ‘dedurou’ ao procurador especial”, que investigava o vazamento da identidade secreta de Valerie.
As coisas mudaram para pior, inclusive na imprensa? Talvez, mas há compensações. O julgamento de Libby, que era o chefe de gabinete do vice-presidente Dick Cheney, foi “o primeiro caso federal no qual os blogueiros independentes receberam as mesmas credenciais que os repórteres dos meios tradicionais de comunicação”, anota Valerie.
O papel dos blogueiros para uma exata reconstituição desse momento histórico foi vital. “Vários repórteres que subiram ao banco de testemunhas expuseram um detalhe bastante repulsivo: o relacionamento simbiótico entre o corpo da imprensa de Washington e a administração federal. Cada um se alimentava do outro para defender seus próprios interesses”, observa a ex-agente. Jornalistas considerados de primeira linha “estavam ansiosos para simplesmente aceitarem informações fornecidas por fontes oficiais, sem conferir nada”. O julgamento “mostrou todos os podres do jornalismo americano”, conclui.
O governo americano venceu a primeira batalha, mas a guerra judicial pela total liberação do livro persiste. Valerie, mãe de gêmeos, se mudou de Washington para o Novo México e, aos 48 anos, procura reconstruir sua vida com a família. Ao menos ainda há essa possibilidade nos EUA.
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