sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O piloto de Hitler

Lúcio Flávio Pinto
Articulista de O Estado do Tapajós

 
É com frustração que se chega ao final da leitura de O piloto de Hilter (Jardim de Livros, São Paulo, 439 páginas). Imaginava-se que o autor, C. G. Sweeting, tivesse conseguido arrancar informações exclusivas e inéditas de Hans Baur, um personagem que conviveu intimamente com Adolf Hitler durante 12 anos. No entanto, há pouca novidade no livro para justificar uma biografia desse tipo.

O autor conhece bastante a história do nazismo e da Segunda Guerra Mundial. Embora esse conhecimento constitua o pano de fundo da narrativa, acaba se tornando sua melhor parte. São observações sensatas, uma ordenação bem feita dos acontecimentos e uma análise esclarecedora do fenômeno Adolf Hitler, por alguém que é íntimo da história militar. Mas a bibliografia com essas características é enorme. Original seria abordar a figura do ditador alemão e do regime que liderou pela ótica do piloto que o serviu e teve convivência excepcionalmente íntima com ele.

Afinal, como salienta o autor, Hitler “foi o primeiro chefe de Estado a usar um avião, não apenas para transporte, mas para propaganda política”. Por isso, permitiu uma relação estreita e intensa com Baur, cujos conselhos sobre as decisões do führer ainda precisam ter seu impacto “precisamente determinado”, admite o autor.

Essa avaliação não esteve entre os propósitos de Baur no diálogo com Sweeting: ele é comedido e discretíssimo. Não avança em terreno minado ou com placa de periculosidade. Só revela o trivial variado, mantendo-se leal ao chefe já morto. Mesmo quando a função que ocupou lhe acarretou uma punição violenta, como a prisão por 10 anos na antiga União Soviética, trata-a como coisa absolutamente normal.

Foi um piloto de guerra, um dos que mais voou em todos os tempos, ainda que apenas em combate durante a Primeira Guerra Mundial, tornando-se piloto particular de Hitler no segundo confronto universal, e ponto final. Se essa guerra foi barbaramente criminosa, não interessa. Ele cumpriu sua missão – e a cumpriu tão bem que recebeu medalhas e condecorações altamente honrosas, apesar de conferidas pelo chefe de um dos governos mais genocidas que já foi organizado na história da humanidade.

Não importa que aos 29 anos tenha aderido ao partido nazista, sete anos antes de ele chegar ao poder na Alemanha, e sido sucessivamente promovido por merecimento, em retribuição à fidelidade incondicional.

Como essas pessoas conseguiram conciliar seu sentimento profissional com sua consciência moral para sobreviver a episódio tão devastador, do qual foram protagonistas, em alguma escala de importância? Baur, por exemplo, morreu tranqüilo e em boa posição, aos 95 anos, em 1993.

As explicações dadas não se mostram satisfatórias, mas o resultado é que atravessaram um período devastador da história contemporânea e passaram para uma nova etapa em outra condição. Não a de criminosos de guerra ou responsáveis por atos hediondos, mas pessoas honestas, que cumpriam seus deveres, que não perguntavam além do que deviam e também não respondem fora dos limites da conveniência, que estabeleceram.

Assim se explica a frustração – e também se exime o autor de responsabilidade – por esse final ruim para o livro. Provavelmente nenhum outro pesquisador teria chegado a resultado diferente. No controle do que dizia, o personagem, ao preservar o chefe, protegeu a si também. Tornou-se co-autor do livro a partir de uma condição prévia: se não fosse assim, não teria aceitado ditar suas memórias ao escritor. Ou isso ou nada.

Uma impressão marcante me ficou de um excelente documentário feito pela BBC inglesa sobre o nazismo. Os entrevistados, todos ex-combatentes do Reich, foram filmados em suas casas, muito bem instaladas, com evidente conforto, bem conservados apesar de estarem além dos 70 anos, falando com fluência, sem revelar emoção mais forte, descrevendo fatos como se falassem na terceira pessoa.

O nazismo não foi além de 1,2% da duração que Hitler profetizara, até os mil anos, mas já parece tão distante que uma reincidência parece já não ser de todo improvável, mesmo que não venha a ter uma fisionomia semelhante. As mudanças havidas no curso das experiências totalitárias são a mão de verniz que esconde o seu traço de continuidade. Ou, como alertou Anthony D’Agostino, citado na abertura do livro: “Esquecer Hitler é um perigo, Hitler nos mostrou como é fina a camada de verniz da civilização”. 

Não há dúvida que Sweeting estava consciente dessa peculiaridade. Seu livro foi escrito com o objetivo de alertá-la. A dúvida que permanece ao fim da leitura é: terá conseguido transmitir a advertência aos seus leitores?

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