Lúcio Flávio Pinto
Articulista de O Estado do Tapajós
Em 1976 a Petrobrás foi obrigada a suspender a publicidade destinada ao semanário Opinião. A ordem partira diretamente do presidente da república. O general Ernesto Geisel nunca conviveu bem com a crítica e a liberdade de imprensa. Mas sua curta tolerância chegou ao fim com denúncias de corrupção em seu governo feitas pelo jornal. Não admitia que uma empresa estatal, que lhe era subordinada, embora fosse privada para todos os efeitos legais, patrocinasse uma publicação que o atacava. Os anúncios da Petrobrás foram cortados da programação de Opinião, alternativo que desafiava o governo ditatorial e a censura política.
Três décadas e meia depois, a mesma Petrobrás é a financiadora de um livro lançado no mês passado, em São Paulo: Jornal Movimento – uma reportagem, de Carlos Azevedo, com reportagens de Marina Amaral e Natalia Viana (Manifesto Editora, Belo Horizonte, 336 páginas). O livro conta a história de outro jornal alternativo criado por grande parte dos jornalistas de Opinião, ainda mais à esquerda e com maior ênfase ideológica.
E conta em grande estilo. O trabalho exigiu a participação de 12 pessoas, que tiveram tempo e condições de preparar o que resultou num dos melhores livros dedicados a um jornal já publicados no Brasil, em formato grande, boa qualidade gráfica e trazendo um DVD com todas as 334 edições de Movimento, com quase 8.600 páginas, incluindo as censuradas. Algo realmente de qualidade e certa sofisticação, a contrastar com a pobreza do jornal e, durante sua existência, o compromisso de estar do outro lado da posição do governo.
Claro que a situação mudou. A presidente é a segunda que o PT elegeu, conquistando o terceiro mandato consecutivo, no alto do poder político no país. As decisões sobre a Petrobrás estão nas mãos de uma militante política que participava da luta armada contra o regime militar na época em que o presidente era o general Geisel. Mas não se trata de mera identidade ideológica ou política, como se preocupa em esclarecer a Petrobrás, em nota – não assinada – na abertura da publicação: “Além de maior empresa do Brasil, somos também os maiores patrocinadores culturais”.
De fato, o produto desse patrocínio tem relevante valor cultural, que poderia ser mais bem avaliado se os beneficiários dos recursos da estatal petrolífera tivessem fornecido essa informação: quanto foi que receberam pelo patrocínio. A deduzir da obra, lançada em São Paulo, sede de Movimento, foi uma boa verba. Sem dúvida, valeu a iniciativa. Se recursos significativos são concedidos para empreitadas da elite, não se há de querer ser franciscanamente pobre na reconstituição de episódio de um dos momentos mais dramáticos da história brasileira.
A etapa mais negra da república começou com a edição do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968. O governo militar, que fora tolerante à oposição até essa data, assumiu plenamente os poderes ditatoriais auto-conferidos. Manifestar crítica passou a ser passível de enquadramento na Lei de Segurança Nacional, seguido por prisão e, eventualmente, “desaparecimento”. Houve retração geral nas manifestações culturais, incluindo a imprensa. Mas algumas janelas continuaram abertas ao pensamento.
A primeira foi a de O Pasquim, em 1969. O semanário carioca captou e drenou a insatisfação e a ânsia de expressão da juventude. Foi um sucesso de público. Alcançou a estratosférica tiragem de 200 mil exemplares, rara até mesmo na grande imprensa. Podia ter-se consolidado, como uma versão bem nacional do Village Voice, de Nova York, o alternativo de maior sucesso no mundo (até deixar de ser exatamente alternativo). Mas a irresponsabilidade e a má-fé de alguns dos integrantes do Pasquim mataram a galinha dos ovos de ouro (a grande diferença em favor de Movimento foi ter uma administração profissionalizada, graças à adesão de um empresário organizado, como foi Sérgio Motta, depois ministro e principal figura do governo FHC).
Em 1972, no auge da violência do Estado, surgiu Opinião, no Rio de Janeiro, certamente o melhor dos alternativos da era pós-1964 e dos melhores de todos os tempos. O esquema do semanário era convencional. Ele só se tornou viável por ter um mecenas. Poucos tinham as qualidades de Fernando Gasparian para desempenhar esse papel no Brasil. Dono de uma indústria têxtil famosa e também das maiores indústrias pré-64, ele era amigo do presidente João Goulart. Foi acusado de ter tirado benefício dessa amizade para conseguir financiamento oficial para o seu negócio. Mas o conduzia muito bem, tornando sua indústria modelar, assim como a Panair, de outro empresário “janguista”, Paulo Sampaio. Com a deposição de Jango, os dois se tornaram réprobos do novo sistema de poder.
Gasparian se mudou para a Inglaterra e lá cultivou sua veia intelectual. Amigo de juventude de outros dois Fernandos (Henrique Cardoso e o jornalista Pedreira), escreveu um livro precioso sobre a aplicação de capitais estrangeiros no Brasil e na América do Sul. Voltou ao Brasil disposto a lançar um jornal de oposição ao regime, mas tomando como modelo os melhores do mundo, como Le Monde, New Statesman e New York Review of Books.
Gasparian juntou-se a intelectuais críticos e a jornalistas que já buscavam alternativas à grande imprensa em Opinião. Embora seus recursos fossem limitados (o capital inicial era de menos de um milhão de reais, atualizados), o jornal provocou um grande impacto pelo conteúdo das suas matérias. Eram bons jornalistas com liberdade para colocar em prática suas virtudes, fazendo o que mais gostam: escrever boas matérias. A tiragem cresceu rapidamente até se aproximar (com 38 mil exemplares) da vendagem de Veja (40 mil), a revista de informações que a Editora Abril lançara em 1968 para ser a Time brasileira.
A censura, cada vez mais feroz, comprometeu a qualidade e a ousadia de Opinião, mas talvez o jornal continuasse a desfrutar da sua posição de prestígio e influência, mesmo com as mutilações feitas pelos censores, se não tivesse encontrado uma pedra no caminho. É um momento quase inevitável nesse tipo de publicação: quando a posição da redação colide com a do mecenas. Gasparian passou a ficar insatisfeito com as críticas feitas a amigos e aliados, e a divulgação de idéias contrárias às suas.
Para os jornalistas, o dono tinha que se contentar em faturar o prestígio da publicação. O que ela continha era prerrogativa dos que a faziam. O mecenas devia ler o jornal como qualquer leitor. O conflito não resultou de exclusivismo de Gasparian: é que ele pretendia alcançar determinados objetivos com o jornal. Para isso, só havia um caminho a seguir: o das alianças com os diversos grupos de oposição ao governo militar, em busca de identidade, sob a liderança de uma elite pensante e empresarial, a mitológica burguesia nacional.
Discordando dessa visão e já não mais disposta a aceitar a subordinação a um dono, a maioria dos jornalistas de Opinião decidiu partir para nova jornada: um jornal de todos, dedicado à causa dos marginalizados e explorados. Em 1975, quando surgiu, Movimento foi lançado em terreno fértil.
Cerca de 500 pessoas, das notórias às comuns, atenderam à conclamação de apoio a um jornal sem um único dono, de propriedade de todos que se juntassem ao empreendimento. Compraram cotas de subscrição do capital, algumas vezes doando essas cotas aos próprios jornalistas. Eles teriam agora um capital socializado para usar em seu projeto.
Movimento circulou durante seis anos, até 1981. Durou um ano e meio a mais do que Opinião, que começou em 1972 e acabou em 1977. Nesse período, funcionou num esquema mais democrático e mais criativo do que o do seu antecessor, com uma participação incomparavelmente maior de amigos, colaboradores e acionistas. Mas nunca chegou perto da importância que teve Opinião.
O livro, concebido, realizado e publicado por pessoas que participaram da história do jornal, parece ter sido idealizado para demonstrar o contrário: que Movimento representou o ápice da imprensa alternativa durante os chamados “anos de chumbo”. A Editora Manifesto (sem assinatura) declara, na apresentação, que Movimento “surgiu com um grande movimento de massas”.
Mas como, se o primeiro número custava, em valores atualizados, 8,50 reais? Quem podia pagar? Não surpreende que, depois da distribuição de 70 mil exemplares de um folheto de apresentação da nova publicação, dos 50 mil exemplares rodados tenham sido vendidos 21 mil, a maior vendagem da história do jornal, que desceria até quatro vezes menos.
Depois de Movimento, na visão do livro, a imprensa alternativa entrou em declínio até praticamente desaparecer. Segundo alguns, por um motivo óbvio: com a democracia e a liberdade de expressão restaurada, a imprensa convencional já podia publicar tudo que pudesse apurar, eliminando a razão de ser de uma vertente alternativa.
Outros não concordam com essa interpretação. Garantem que, pelo contrário, a grande imprensa, através da autocensura ou do condicionamento de suas matérias a seus interesses corporativos ou políticos, continua a sonegar informações vitais da opinião pública e a manipulá-la. Independentemente da explicação, o fato concreto é o desaparecimento da genealogia alternativa.
Mas não é fácil concordar com as teses do livro de Carlos Azevedo e colaboradoras. Muito mais ideológico e sectário, por isso mesmo Movimento seguiu no rumo do auto-esgotamento, de uma via sem saída. O livro se empenha em desmentir que o jornal tenha sido um porta-voz não assumido do Partido Comunista do Brasil, numa relação que teria origens mais remotas, ainda na fase de Opinião, quando o líder dos dois jornais, Raimundo Rodrigues Pereira, se aproximou da Ação Popular, já desligada da sua vinculação à Igreja e assumindo a opção política pela luta armada.
São muitas as provas arroladas por Azevedo na demonstração da dissociação entre o jornal e o PC do B. Mesmo que elas sejam aceitas, é impossível não chegar à conclusão de que Movimento aceitou integrar a principal dissidência do PC do B. As críticas feitas ao partido não eram uma negação da sua filosofia ou da sua práxis, mas o instrumento dos que divergiam delas.
Na intensificação dessa posição editorial, o jornal acabou por se tornar um elemento da luta interna e a adquirir um caráter de veículo partidário. Tornou-se sectário, monocórdio e opiniático. O leitor passou a ser uma abstração, uma entidade à qual se referia com o uso do vasto repertório de jargões e linguagem cifrada próprio das publicações partidarizadas, que, nessa época, se multiplicavam (embora, quase sempre, para ter vida curta).
Carlos Azevedo centra essa polêmica nos “Ensaios Populares”, uma seção didático-pedagógica com a pretensão de ser uma crítica ao cotidiano em cima dos fatos. O autor era Duarte Pereira, militante do PC do B que se afastara do partido, mas, por se encontrar ainda na clandestinidade, não podia ser identificado. Os artigos, sem assinatura, se pareciam a editoriais do jornal. A impressão era reforçada por seu editor-chefe, Raimundo Pereira, que ora assumia informalmente a paternidade dos ensaios ora reconhecia a autoria alheia, mas mantinha segredo sobre a identidade do responsável.
Não interessa tanto avaliar se ele agiu certo ou errado neste particular. O problema é que o grande jornalista Raimundo Rodrigues Pereira decidira ser também um grande profeta político, um homo faber da revolução brasileira. Sua personalidade se amoldava a esse tipo de líder como modelo, à esquerda do espectro político: sempre foi centralizador e autoritário (embora sem nunca deixar de ser negociador e atencioso, com uma paciência de Jó).
Mas esse modelo só cabe em seitas. Não podia dar certo numa organização jornalística. Ele foi a causa interna fundamental para Movimento não ir além dos seis anos, exatamente quando a conjuntura política começava a mudar, favorecendo uma publicação crítica, mas aberta, jornalística de verdade.
A censura foi ainda mais castradora em Movimento, mas é de se admitir que as pessoas que o apoiavam, e que sempre responderam positivamente aos pedidos de ajuda, continuariam a dar sustentação ao jornal se ele não se tivesse se reduzido, na essência, a uma publicação esotérica. Suas páginas e capas estavam cada vez mais ocupadas por ensaios ideológicos e catilinárias codificadas pelo jargão partidário, pouco tendo a ver com uma pauta jornalística.
Depois de ter chegado a um pique próximo de 20 mil exemplares, o jornal baixou para menos de cinco mil ao final, leitura cativa de pessoas que viviam na quadratura de um círculo que imaginavam ser a roda da história e da revolução, mas já não passava de uma biruta desligada dos fatos e da realidade. O final de Movimento foi incomparavelmente mais melancólico do que o de Opinião, que, bem ou mal, pôde escolher pôr fim à sua existência por um ato de vontade do que esmagado pela tempestade na qual se transformaram os ventos que semeou na contramão da história. A ditadura pode ter conseguido, com sua ação repressora, quase tanto quanto obteve involuntariamente pelas deficiências e erros internos do alvo da sua perseguição.
Nenhum comentário:
Postar um comentário