terça-feira, 1 de novembro de 2011

A chantagem cotidiana


 
Lúcio Flávio Pinto
 
Uma turma da limpeza municipal atuava na minha rua quando saí de casa, apressado, no início da noite do dia 21. Um dos trabalhadores, em tom impositivo, me pediu dinheiro. Pela pressão e pelo tom, não dei. Pressenti na hora o que encontraria na minha volta: o lixo foi deixado à porta de casa. E retirado da frente das residências que compareceram à coleta.

É essa a regra da relação do cidadão com prestadores de serviço das mais diversas (e até esdrúxulas) condições. O flanelinha aborda os motoristas deixando implícito que, se não pagarem, seus carros sofrerão as consequências. Alguns deles se preocupam em suavizar a chantagem com um tratamento cordial e a simpatia que torna atraentes até os canalhas (ou principalmente eles). Outros se tornaram tão cínicos que provocam a reação daqueles que ainda não se sujeitaram por completo ao império do medo (sazonalmente conclamado a decidir em ocasiões mais solenes e importantes, como as eleições).

O vendedor varejista dentro de ônibus, com sua liturgia religiosa e seus modos aparentemente humildes, começa sua oração advertindo a todos que poderia estar roubando ou fazendo pior. Prefere, no entanto, tirar do suor do trabalho sua sobrevivência e a dos seus dependentes. É justo esperar desse altruísmo que os passageiros comprem chicletes, balas, bombons, livros de palavras cruzadas e quetais.

Acho necessária a misericórdia e a solidariedade, justamente quando elas se demonstram necessárias. Dou o dinheiro pedido quando o pedinte se me apresenta com uma narrativa coerente e é convincente o tom da sua voz. Podemos nos enganar na nossa avaliação e a tendência é de que nos enganemos cada vez mais diante do aprimoramento desses personagens, multiplicados pelas ruas. O erro faz parte do aprendizado.

O grave se revela quando o pedido de ajuda ou mesmo a cobrança de um adicional pelo serviço prestado tem amparo mais forte – ou na própria força, em crescente evolução para a violência, ou em alguma instituição. O “por fora”, que podia até ser admitido como eventualidade da exceção, se tornou regra. Praticada de cima a baixo na pirâmide desse monstro chamado Estado. Do burocrata-mor, com ou sem mandato, ao lixeiro.

Não podemos nos tornar insensíveis aos variados e multifacetados dramas humanos. Mas não podemos ser coniventes com o abuso. A omissão, a par da intervenção ativíssima, aduba o terreno do abuso, da impunidade, da violência. A renúncia à cidadania, a uma relação civilizada entre as partes que compõem o todo da vida social, gera diferentes camadas de vilanias. Daquela que dói individualmente, como a de ser vítima de lixeiros, sem a mais remota ideia do que seja o servidor público (e sem ter reconhecido o direito ao tratamento que a administração superior lhe devia dar), até àquelas que vão se tornando chagas sociais, num grau tão avançado de deterioração moral que já parecem incuráveis.

O mais remoto vislumbre de esperança, contudo, nos deve estimular a não ceder à ameaça, à chantagem. Parta de quem partir. O lixeiro sem exemplos dignos a seguir e, no topo, o gestor, que cria condições para que o lixeiro, ao invés de prestar o serviço público devido ao cidadão recolhedor de impostos para pagá-lo, coaja para obter uma fração microscópica do “por fora” que vê circular no topo da estrutura do poder público.

Um comentário:

Doralice Araújo disse...

Oportuníssima reflexão, Lúcio Flávio;todos os pontos bem representados na prática cotidiana.