segunda-feira, 28 de maio de 2012

As contas escondidas da Vale


by Lúcio Flávio Pinto

Foi em 2005 que a Vale imprimiu seu último balanço anual em papel. A partir do ano seguinte só o seu relatório de sustentabilidade teria versão em papel . Nunca mais as demonstrações contábeis e financeiras. Elas ainda podem ser consultadas, mas apenas na versão eletrônica, no site da empresa. Mesmo assim, a forma mais difundida do relatório não é mais anual: limita-se a períodos trimestrais.

Quem quiser ter uma visão integral detalhada  do desempenho da empresa vai ter que agregar os números por iniciativa própria, o que demanda mais tempo, paciência e competência específica.

Em compensação, a cada trimestre – ou a cada momento importante das atividades da companhia – são abundantes os press-releases que a empresa envia aos jornalistas. Tão detalhistas que quase contêm a verdade. Quase.

Sempre há um detalhe, em geral inconveniente, que não é contemplado nesse feerico material de divulgação. Para obtê-lo, porém, o profissional da informação terá que gastar muito mais trabalho. Por que não se contentar com o belo prato feito?

Um número crescente de jornalistas faz essa opção, até se esforçando por esticar ao máximo o rendimento em cima dos dados fornecidos pela Vale. Devem ter a sensação de poder surpreender a autora da gentileza e serem fiéis ao compromisso com o leitor, mas é difícil.

O enredo parece perfeito. Consciente da sua responsabilidade social, a empresa se dispõe a um strip-tease informativo, fornecendo tudo que é relevante para uma análise séria e honesta do seu desempenho, monitorado pelo mercado através das bolsas de valores, principalmente a de Nova York.

Tão desprendida ela se revela nessa disposição que torna perfeitamente dispensável a apuração à margem ou além dos alentados pacotes que despacha para a mídia. Acompanhados, é claro, de farta publicidade para o topo das empresas jornalísticas. Publicidade inteiramente dispensável para uma corporação que negocia contratos de longo prazo, e de alto valor, com seus clientes - que são poucos.

Muitos jornalistas e analistas em geral devem reagir positivamente aos relatórios de sustentabilidade da Vale. Neles, a empresa demonstra o grau e a extensão do exercício das responsabilidades que lhe cabem em relação à sociedade e à natureza. Os relatos são abundantes e as imagens, sempre de impressionar, são numerosas. A mineradora faz jus ao crédito: está procurando um relacionamento franco com a opinião pública, convicta de que o seu modo de proceder é sua melhor defesa.

Quando a Vale deixou de publicar em papel o seu balanço anual, que sempre incluía as demonstrações contábeis e financeiras em toda a sua extensão, fiz chegar minha estranheza e, em seguida, meu protesto a quem interessava, os ditos canais competentes.

Não se tratava apenas de uma impensada e automática adesão da corporação ao meio eletrônico, como tem acontecido com frequência preocupante no mundo dos negócios e no âmbito público.

Afinal, o relatório de sustentabilidade continuou a ser impresso, com os recursos gráficos sofisticados de antes. Além disso, o verdadeiro balanço contábil também deixou de ter até no site da companhia o destaque dado aos relatórios trimestrais. Para completar, press-releases cada vez mais fartos, como se contivessem todas as demonstrações e as tornassem dispensáveis.

Minha resistência a aceitar essa nova realidade era apenas sinal de caduquice e teimosia, de iconoclastia irracional, de desajuste ao novo tempo tecnológico? O leitor poderá comparar as análises que eaqui  e no meu Jornal Pessoal - se faz das atividades da Vale com o que sai não num ou noutro jornal, mas em toda a mídia nacional. Se concluir que o que aqui sai nada tem de diferente dos demais meios de comunicação (não estou falando em interpretação, mas em dados brutos mesmo), então é verdade: não passo de um criador de caso.

No entanto, desde que a censura política se restabeleceu no Brasil, depois do AI-5, no final de 1968, ao buscar informações significativas e de confiança num ambiente empobrecido, acabei descobrindo que os balanços das empresas (como os orçamentos dos governos, estes com menor grau de segurança e credibilidade) são fontes indispensáveis sobre o que vai pelo mundo, conforme anunciavam aqueles noticiosos exibidos nos cinemas até meados da década de 60 do século passado.

Quando comecei a consultá-los, os balanços ainda eram muito suscetíveis a manipulações e maquiagens. Com o passar dos anos, graças à melhoria na legislação e ao melhor controle da Comissão de Valores Mobiliários, as demonstrações foram espelhando mais adequadamente a realidade das empresas. Mesmo algumas manobras ainda cometidas podem ser identificadas e revertidas, de tal maneira que boa parte delas perdeu eficácia (não de todo, como se pode verificar em algumas descobertas de fraudes feitas, infelizmente, só a posteriori dos danos que causaram).

Em tal contexto, é inaceitável que a maior empresa privada do Brasil e do continente, uma das mais disputadas e valorizadas na bolsa de valores, não procure dar a maior difusão possível às suas contas. Pelo contrário: segue em sentido inverso ao que seria de se esperar se aplicasse os compromissos – que diz pôr em prática no balanço social – às suas demonstrações contábeis e financeiras.

Os jornalistas conscienciosos e sérios deviam se interessar pela questão e cobrar da Vale a publicação do seu balanço anual, na íntegra, em papel, com o uso da melhor forma de apresentação possível para facilitar sua compreensão.

Só assim – e não com ricos press-releases – ela cumprirá sua responsabilidade social. Permitirá que os verdadeiros analistas se debrucem sobre suas contas sem viseiras nem pretextos outros que desviem sua atenção do compromisso maior: com a opinião pública e não com a empresa, qualquer que ela seja. Mesmo a mais reluzente de todas.

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