Lúcio Flávio Pinto
Fotos: Miguel Oliveira
É
uma crueldade ficar só 24 horas de um fim de semana nesta transição de maio a
junho em Santarém. Pois foi o meu programa do dia 26 ao 27. Já do avião, que
fez uma rara aproximação panorâmica do aeroporto, pousando com uma suavidade
excepcional na pista, pude ver grande parte do litoral da cidade.
Céu
azul, luminosidade absoluta, a visão era encantadora. O barrento Amazonas
avivava o contraste com o verde do Tapajós graças ao tom ainda mais
achocolatado das suas águas, carregadas de sedimentos, com uma intensidade que
ainda não tinha visto daquele ângulo. O Amazonas parecia ter avançado além dos
seus limites, mesmo para uma grande cheia, Tapajós acima. Chegava às margens do
seu oponente na medição de forças, borrando as margens do Tapajós.
O
fenômeno de águas e sedimentos em suspensão se revelava pela derrocagem de
ilhas mais antigas e consolidação de territórios novos, como a língua de terra
que surgiu em frente à cidade e vai se tornando numa barreira entre o Tapajós e
o Amazonas, prolongando-se até o Ituqui. Transformação admirável de uma
paisagem vista dezenas de vezes da janela de um avião. Primeiro os pequenos,
barulhentos e limitados DC-3 e Catalinas. Agora, os jatos puros, cada vez mais
silenciosos e maleáveis. Espetáculo de primeira.
No
chão, aumenta a beleza. Não há espetáculo na Terra igual a esse cabo-de-guerra
dos dois rios. Supera em beleza cena semelhante, que se passa em Manaus entre o
Negro e o mesmo Amazonas. Do alto de alguns pontos da Prainha, que podia se
tornar o bairro mais bucólico da cidade, a contemplação constitui oportunidade
única de aprendizado.
O
nível dos dois rios quase transborda do dique de contenção construído ao longo
do tempo. Mesmo retida pela estrutura de concreto, a água penetra através do
esgoto, de outros canais e de todas as aberturas existentes, inundando a
principal rua do comércio. Mas parece haver um equilíbrio tácito, uma espécie
de trégua, o equilíbrio da natureza em um dos momentos de maior tensão dos seus
elementos mais destacados.
A
água exuberante, que domina todo ambiente, se limita ao curso do rio. Já não
chove mais no local. A cheia é o eco retardado de tempestades ocorridas já há
algum tempo, em locais distantes, nas cabeceiras dos formadores do Amazonas.
Tem-se então a combinação discrepante da cheia no curso d’água com a estiagem
no céu, límpido, sem nuvens, interrompida apenas por tempestades curtas, que
anunciam uma chuvarada que não vem. Intimidando e atemorizando.
O
calor e a secura do ar recomendam ficar em casa, à espera de condições naturais
melhores, ou de bubuia na água, que constitui o melhor programa desse período
nos fins de semana. A atividade humana devia permanecer suspensa entre as 11 e
as 16 horas. Nada de trabalho externo nesse período. O cidadão devia se entocar
para escapar da canícula sufocante, se revigorando. Prolongaria seu expediente
até as oito ou nove da noite, quando emendaria em passeios pela orla até as
nove e 10 da noite.
Santarém
desperdiça o capital natural que sua localização lhe proporciona. As praias em frente
à cidade sucumbiram ao crescimento urbano, mas o rio continua no mesmo local,
resistindo ao massacre diário da poluição e do descaso. Ele é o rei do lugar.
Tem que ser visto de todos os pontos possíveis na cidade, que se deve ajustar
ao movimento perene das águas e usufruir do seu potencial. Mesmo o turista
apressado ou o nativo deslocado do seu domicílio original e que volta para uma
permanência tão dolorosamente curta pode perceber esse desperdício.
Santarém
é a capital mediterrânea do vale do Amazonas. A junção do grande rio a um dos
seus mais belos afluentes, mesmo a quase mil quilômetros do mar, é uma
reencarnação litorânea. Não é à toa que o Amazonas é chamado de rio-mar.
Santarém é a sua capital por excelência. Tem que se conscientizar dessa condição,
consolidá-la e resistir à tentação de ser núcleo urbano do rodoviarismo, da
descaracterização amazônica. Sítio dos santarenos e amazônidas.
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