Lúcio Flávio Pinto
Articulista de O Estado do Tapajós
A
primeira campanha de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da república
custou um milhão de reais. A vitória de Fernando Collor de Mello saiu por 10
vezes mais porque dos R$ 160 milhões arrecadados pelo seu tesoureiro, Paulo
César Farias, “só” R$ 100 milhões foram gastos. Foi a maior “sobra de campanha”
de todos os tempos. Mesmo porque foi a primeira vez que esse tipo de receita
foi documentado. E acabou se tornando de domínio público o que antes era feito
com sigilo e nos bastidores.
Collor
mandou PC Farias administrar esse fundo, absolutamente clandestino, de R$ 60
milhões, o mais desejável dos caixa 2 que alguém podia imaginar. O grande
escândalo que levou à desgraça de Collor resultou da desenvoltura dos saques
nesse caixa. Ele já existia antes, mas com PC Farias assumiu um tamanho
inédito. Passou a ser uma fonte de dinheiro sem registro notável.
Lula
e sua equipe, depois de três eleições frustradas em 12 anos de muita
experiência, estavam prontos para vencer a disputa de 2002. Duda Mendonça, o
melhor dos marqueteiros, foi contratado para polir o “Lulinha paz e amor”, que
pôs fim à reação da classe média, multiplicada pela sua capacidade de influir
sobre a opinião pública.
Duda
custou R$ 15,5 milhões (incluindo serviços anteriores, seu faturamento
ultrapassou R$ 40 milhões). Mas não era o único marqueteiro na campanha. João
Santana faturou quase 14 milhões. Só com os dois, o comitê de Lula gastou 30
vezes mais do que em toda campanha de 2009. De onde veio esse dinheiro? Como
foi distribuído? Quem o distribuiu? Quem o recebeu? Como essas despesas foram
lançadas?
Estas
são as perguntas fundamentais por trás do “mensalão”, uma história que avança
há sete anos. Tendo começado por denúncias anônimas ou assumidas, teve
julgamento político no Congresso Nacional e poucas condenações. Chegou agora ao
Supremo Tribunal Federal. Na denúncia, o procurador-geral da república, Roberto
Gurgel, diz que se trata do “maior crime político da história da república”,
perpetrado por uma “sofisticada organização criminosa”.
Ela
se reparte em três quadrilhas. A política, comandada por José Dirceu, a segunda
figura mais importante no PT depois de Lula. A de captação de recursos, à
frente o publicitário Marcos Valério. E a financeira, liderada pela presidente
do Banco Rural, Karla Rabello.
O
chefe do Ministério Público Federal diz que elas agiam entrosadas. Primeiro
para pagar as contas eleitorais do PT e de seus principais aliados políticos.
Depois, já atuando de forma permanente, para comprar vitórias do governo na
votação de iniciativas do seu interesse no parlamento. O dinheiro, que fluiu
inicialmente através de instituições privadas, passou a sair dos cofres
públicos quando Lula assumiu a presidência.
O
relatório de Gurgel tem 123 páginas. É contundente. Os autos do processo são
formados por 233 volumes com quase 50 mil páginas, nas quais aparecem 700
personagens, dos quais 38 foram denunciados à justiça como réus. O Congresso,
que concluiu pela prática dos crimes e forçou alguns dos seus integrantes a
renunciar, além de cassar outros, concorda. Três procuradores-gerais sucessivos
partilharam a mesma convicção. O ministro relator no STF, Joaquim Barbosa
repetiu suas afirmativas.
A
defesa dos réus concorda que um crime foi praticado: o caixa 2. Nega todos os
outros delitos. O crime eleitoral está prescrito. Se só houver esse
indiciamento, mesmo que haja condenação, não haverá presos. Ninguém irá para a
cadeia. Mas não irá, sustentam os advogados dos acusados, porque não existem
provas das demais práticas criminosas, apenas ilações e algumas evidências,
insuficientes para definir os tipos criminais.
Ainda
que a denúncia fosse procedente, ela exagera. Não se trata, a rigor, do “maior
crime político do Brasil”. Mas talvez seja o mais grave da atualidade. Suas
consequências, estas, sim, podem ser ainda mais desastrosas. Podem pôr fim ao
que restava de preocupação ética na prática política brasileira, que, em humor
tornado negro, daria razão à vovó Zulmira, personagem antológica criada por
Stanislaw Ponte Preta: se a moral não vai ser restaurada, então que todos nos
locupletemos.
Depois
de três derrotas na disputa pelo poder, Lula e o PT concluíram que só venceriam
se deixassem de ser o que vinham sendo: uma alternativa à esquerda para o país,
uma novidade, uma mudança profunda, talvez radical. O que era para ser uma
tática de momento, sem a qual seria impossível vencer a quarta tentativa, se
tornou a prática corrente de Lula e do partido colocado ao seu reboque, como
sua mera extensão.
Em
algum momento, seus dirigentes imaginaram que a mão suja podia ser lavada logo
depois da vitória. Mas era preciso sujá-la sem pudor para derrotar o PSDB de
Fernando Henrique Cardoso, mesmo que seu candidato fosse o indigesto José
Serra. Ninguém contesta, nem o petista mais vermelho, que o partido distribuiu
clandestinamente R$ 56 milhões entre o final de 2002 e o primeiro semestre de
2005, R$ 28,5 milhões para o próprio PT e o restante entre PL, PP, PTB e PMDB.
Todo
esse dinheiro seria para quitar as dívidas pendentes num orçamento que perdeu
seu senso de realidade quando a hipótese de vitória se tornou forte. Tudo foi
avalizado, até o que não podia ser declarado. Por isso o pagamento de Duda foi
para um paraíso fiscal nas Bahamas. Por baixo dos panos e atrás dos biombos
outras contas foram acertadas, no melhor estilo mafioso.
Uma
vez equilibrado o fechamento do caixa 2, o PT podia voltar a ser o campeão da
ética, da honradez, da defesa intransigente de programas? Não. Pelo simples
detalhe: já deixara de corresponder a essa imagem de propaganda. O PT perdera a
virgindade a partir das administrações regionais. Formara caixa 2, desviara
sobras de campanha, negociara decisões, estabelecera ligação com gente escusa e
colocara ao alcance de alguns dos seus dirigentes um poder que eles jamais
imaginaram que um dia poderiam ter.
Os
petistas ainda tinham a síndrome de Harry Porter. Pareciam convencidos de que a
capa do passado ocultaria seus mal feitos. Podiam então se lançar à desonra
certos de que ninguém os veria. Teria diante dos seus atos o pior dos cegos, o
que se recusa a ver. Invisíveis, os petistas no poder davam-se ao desfrute de
repetir as práticas que condenavam quando na oposição. Não importava: o
dinheiro ilícito e a prática imoral eram meios escusos que se legitimavam pelo
seu fim, o de colocar no comando do país as melhores pessoas, o melhor partido,
o melhor programa. Uma vez alcançado o fim, o meio que o negava se extinguiria.
A classe desfavorecida havia chegado, finalmente, ao paraíso.
No
meio dessa engrenagem toda houve gente que se assustou. Uns saíram do jogo.
Outros o denunciaram. O caso mais exemplar foi o do ex-prefeito de Santo André,
Antônio Celso Daniel. Ele constatou que o dinheiro sujo não estava indo apenas
para o caixa 2, entidade remota que com o PT se transformou em mecanismo
burocratizado, absorvido, “normalizado”. Alguns petistas estavam colocando o
dinheiro no próprio bolso. Estavam roubando.
Celso
Daniel foi assassinado. Sua família, que denunciou a inspiração política do
crime, teve que fugir do Brasil, se exilando na França. Voltou recentemente com
o mesmo discurso. E com o mesmo efeito prático: nenhum. A síndrome de Harry
Potter o inutiliza em relação ao PT. Lula ainda tem o reforço do efeito teflon:
nenhuma acusação gruda nele.
Mas
tantas foram as vilanias que a originalidade do “mensalão” na sua fase judicial
é o surgimento do acusado que quer ser réu. Não pretende o benefício da delação
premiada: admite que cometeu o crime, desde que o crime seja o eleitoral, do
caixa 2, que o manterá longe da cadeia, logo lhe permitindo retornar à condição
de primariedade, com a qual sua vida prosseguirá risonha e franca.
O
código para essa saída eficaz foi dado por Lula na famosa entrevista
semiclandestina dada em Paris a uma jornalista de aluguel (e de ocasião): tudo
isso é caixa 2, prática ancestral. É um deslize dos “aloprados”, do mesmo
gênero que mereceu a tolerância de outro presidente da república, o general
Ernesto Geisel, em relação aos “radicais, mas sinceros”. Nada que um carão não
resolva, fazendo o rebelde se enquadrar de novo e voltar a ser uma boa pessoa.
Assumindo
grotescamente essa culpa perante a justiça, ardentemente desejosos de que venha
essa condenação segmentada, os réus do “mensalão” sepultaram a moral e a ética
pública. Se os santos pecaram e proclamam seu pecado, aos pecadores tudo está
autorizado.
O
mais exemplar dos atores dessa ópera bufa, Delúbio Soares, o PC Farias de Lula,
é “uma pessoa honesta, no sentido de que não arrecadou dinheiro oficial ou por
baixo dos panos,para aproveitar uma parte”. É o que assegura A outra tese do mensalão, livro de Antônio
Carlos Queiroz, Lia Imanishi Rodrigues e Raimundo Rodrigues Pereira (159
páginas, Editora Manifesto), que acaba de ser lançado para se opor ao
prejulgamento da imprensa dominante, dos inimigos do PT e de um poder
judiciário manipulado.
O
pecado (venial, é claro) de Delúbio é “seu gosto por bons vinhos e charutos
cubanos”. Para um simplório professor de matemática de escola de ensino médio
(da qual foi recentemente demitido, por abandono do emprego) em Goiás, cabe
perguntar como o tesoureiro de sempre de Lula formou esses gostos e como o
mantém. Recebendo presentes de amigos? Naturalmente, ele acredita em jantar
grátis.
Seu
chefe, que morou por anos em casa alugada que o compadre lhe cedeu, com tudo
mais para uma boa vida (charutos e vinhos inclusos), também. A partir do
exemplo superior, muitos petistas seguiram atrás, sem perguntar pela origem dos
fundos que sustentam esses novos hábitos.
A
“outra tese”, que os jornalistas da revista Retrato
do Brasil apresentam, com muitos argumentos em seu abono, pode ser tão
defensável quanto a primeira tese, ou até mais, já que os acusadores dos
integrantes das três quadrilhas reunidas pela “sofisticada organização
criminosa” exageraram na ênfase e extrapolaram nas interpretações. A base
factual é menor do que a conclusão a que esses acusadores chegaram.
É
pouco provável (embora não de todo impossível) que Lula e o PT precisassem
criar uma propina mensal para comprar votos de parlamentares para seus
projetos. Para comprar votos, têm mais eficácia obras favoráveis e emendas
parlamentares aprovadas, o que o PT faz à larga desde que assumiu o Palácio do
Planalto. E é muito mais dinheiro do que aquele que pode ter saído do Banco do
Brasil através do fundo Visanet. Sem o risco de poder ser classificado de
criminoso. Imoral, sim. Antiético, sem dúvida. Mas é sempre assim no alto do
poder. O PT apenas repete os vícios, já sem qualquer resquício de pudor.
Daí
a concluir que o Supremo Tribunal Federal se transformou num “tribunal de
exceção” ao julgar o “mensalão”, como fazem os três jornalistas da “outra
tese”, vai uma distância muito grande. Os exageros de lado a lado servem, no
fim, aos que aceitam que alguma verdade seja dita e, por causa dela, alguém
seja punida. O cego-surdo por conveniência mais famoso do Brasil.
Mas
não que a revelação chegue à verdade por inteiro e alcance todos os envolvidos.
Ou então, depois de José Dirceu, derrubado pela denúncia de Roberto Jefferson
(que jamais podia assumir o papel de mocinho num enredo decente), teria que ser
atingido quem completava a cadeia de comando: Luiz Inácio Lula da Silva.
Por
isso, qualquer que venha a ser o desfecho dessa novela, depois dela o Brasil,
sob a aparência de uma saúde reforçada, terá um organismo debilitado por um mal
invisível: o acerto de contas entre os personagens principais, mas invisíveis.
Ou porque sofrem da síndrome de Harry Potter. Ou porque sempre foram
invisíveis.
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