Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal
Julgar é o mais difícil dos atos humanos. Tanto no cotidiano das relações informais quanto – e, sobretudo – na atividade jurisdicional propriamente dita. Não por outro motivo, os juízes costumam ser bem pagos (mais do que qualquer outro servidor público) e respeitados, quase divinizados. A magistratura é um círculo virtuoso que quase se assemelha ao Olimpo grego. Os deuses eram apenas alguns patamares superiores aos humanos. Os magistrados estão muitos corpos além do comum dos mortais.
Julgar bem exige um adequado conhecimento das leis, de suas interpretações e dos julgados que consolidam sua aplicação, conquista de muitas e exaustivas leituras. Porém, só esse direito positivo satisfaz cada vez menos. A sociedade, armada de ferramentas mais numerosas para acompanhar e avaliar o funcionamento do serviço público, inclusive em tempo real, pressiona, cobra ou interfere sobre as decisões da justiça. Uma ponderação equilibrada da justiça codificada ao seu contexto social, do papel à realidade, constitui o mérito maior dos melhores magistrados. É este também o maior desafio que se impõe ao poder judiciário atualizado ao seu tempo.
Um caso concreto da justiça do Pará exemplifica essa complexidade. A desembargadora Vânia Bitar Cunha provocou uma onda de críticas e denúncias contra sua deliberação, de conceder habeas corpus para manter em liberdade o ex-deputado estadual do DEM (hoje, do PP) Luiz Afonso Sefer. Ele fora condenado em 1º grau a 21 anos de prisão pela juíza Graça Alfaia, titular da vara dos crimes contra a infância e adolescência, por abuso sexual de uma menor durante quatro anos. A pedofilia é um dos crimes mais repulsivos e mais repudiados socialmente. Cresce a onda de indignação da sociedade contra os pedófilos.
A desembargadora foi acusada de ter favorecido o ex-parlamentar porque o advogado de Sefer também é o defensor de um filho da magistrada, num caso de atropelamento e fuga. Na época, a pergunta que vinha das ruas era se o atropelador fosse um cidadão comum teria conseguido esse benefício, escapando ao flagrante.
A desembargadora não ignorou as críticas. Ao contrário da maioria dos seus colegas de toga, as enfrentou. Disse que sua decisão foi tomada por convicção e não pelo nome da parte ou do seu advogado. Salientou que o advogado Osvaldo Serrão atua pago na defesa do seu filho – e bem pago, como costumam ser os criminalistas que conseguem façanhas semelhantes na lide judiciária. A situação pessoal em nada interferiu no desempenho de ofício, sustentou a desembargadora, apresentando a fundamentação da deliberação de conceder o alvará de liberdade para o ex-deputado.
Além da associação de idéias e das conjecturas lógicas, nenhum dos críticos do ato da magistrada apresentou provas da acusação ou robustas evidências em seu favor. Assim, prevalece o argumento da desembargadora. Mesmo deixando completamente de lado essa argüição de suspeição, sua convicção em favor do réu admite objeções. Em primeiro lugar, pela natureza do crime: hediondo. Depois, porque da outra vez em que contra ele foi expedido um mandado de prisão, Luiz Afonso Sefer tentava evadir-se. Mesmo preso, foi solto por outro habeas corpus concedido pelo desembargador José Maria do Rosário, que também provocou controvérsias (o beneficiado teria que se apresentar perante o magistrado, o que acabou fazendo, mas não na data determinada pela decisão inusual).
Também porque, embora manifestasse indignação e se declarasse inocente, Sefer preferiu renunciar ao mandato de deputado a enfrentar todas as provas opostas à sua presunção de inocência. Significava dar mais importância ao poder derivado da condição de deputado (mais um dos cidadãos mais iguais do que os outros na mais desigual das repúblicas do mundo, a brasileira) do que à honra pessoal. Ainda mais porque a mácula tinha a tonalidade negra decorrente do crime que lhe foi atribuído, de pedofilia. E, finalmente, porque parecia evidente a movimentação do ex-parlamentar e família sobre testemunhas do caso. No dia da apresentação da sentença pela juíza Graça Alfaia, os Sefer comandaram uma grande manifestação em frente ao fórum criminal de Belém para pressionar e criticar a magistrada pelo seu ato.
Uma estrita leitura dos comandos normativos do código penal talvez fosse o suficiente para a concessão do habeas corpus, como fez a desembargadora Vânia Bitar. Uma análise considerando as circunstâncias sociais do processo, o contexto que o situa no tempo histórico e na realidade concreta talvez recomendassem a rejeição do chamado (pelos advogados) “remédio heróico” e a confirmação da ordem de prisão contra Sefer. Ele foi condenado por duas vezes pelo atual titular e pelo anterior da vara especializada, que fizeram exaustiva análise dos autos do processo, com base no inquérito policial, nos laudos periciais, no parecer do Ministério Público e nas sessões das comissões parlamentares de inquérito (federal e estadual), unânimes em apontar o crime praticado pelo ex-parlamentar. Não só o de abuso sexual, mas também o de trabalho infantil doméstico.
Por isso, a deliberação de segundo grau precisa considerar na sua decisão, por enquanto apenas liminar, que o poder institucional dê ao conteúdo dos autos do processo instaurado contra Luiz Afonso Sefer a resposta que as informações neles contidas exige. Ou, mais uma vez, a formalidade obtusa será o biombo para a fuga dos que têm colarinhos suficientemente brancos. E os brancos, como se sabe há séculos, se entendem.
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