Lúcio Flávio Pinto
Só escrevo este artigo porque, depois de ler os que foram publicados na grande imprensa nacional e saíram nos blogs, fiquei com a sensação de que falharam na tarefa indispensável de revelar aos mais novos quem foi Reynaldo Jardim, que morreu no dia 1o, aos 84 anos. Ler o seu livro Joana em Flor, de 1965, me causou grande impacto. Pela poesia, surpreendentemente rimada, com ritmo veloz, de um verdadeiro trovador. Também pelo formato (pequeno) e a aparência gráfica: uma jóia, publicada por um grande pequeno editor, José Álvaro. E por me ter dado a conhecer Käthe Kollvitz, para cujas gravuras Reynaldo fez poemas traduzindo a indignação e a profundidade da formidável artista (só o fato de ter nascido prussiana e morrer como russa, aos 78 anos, depois de ter vivido as duas grandes guerras mundiais da humanidade, já é o bastante para dizer sobre o estofo das suas mensagens de protesto).
Era muita coisa para um livro só, pequeno e fino. Eu já era admirador e voraz leitor de tudo que se escrevia sobre-e-de Reynaldo. Fui encontrá-lo em 1967 (ou 1968?), quando ele veio a Belém fazer uma reforma gráfica em O Liberal, de Romulo Maiorana, o pai (quando ainda havia empenho pela qualidade editorial e não apenas por máquinas último grito). Fui ao lançamento do livro, numa daquelas casas (manuelinas?) da vila marginal à Rui Barbosa, entre a Nazaré a Quintino, onde – se a memória etílica de então não me engana – funcionou o curso de vestibular que abrigava um centro de resistência intelectual ao regime militar.
Bebemos muito e fomos papear no Bar do Parque até o amanhecer. Reynaldo era irreverente, o que podia lhe dar a falsa aparência de agressivo. Na verdade, era atencioso, humilde, prestativo. Não se dava a importância que tinha. Ou não exigia que se levasse em consideração seu enorme, brilhante e diversificado currículo.
Ele se tornou popular quando levou um personagem, Barrabás, para as páginas do Pasquim, uns três anos depois. Novamente, versos curtos, diretos, mas cheios de duplo sentido, ironia, humor e crítica política. Arte verdadeira, não simples panfleto. Panfletar, porém, ele sabia – e como. Sem nunca fazer concessões ao rústico, ao fácil, ao comercial. Nos quatro volumes dos livros de versos da coleção Violão de Rua, do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE e da Editora Civilização Brasileira, que ficou nesse número porque foi barrada pelo golpe militar de 1964, estavam algumas das características do processo inventivo de Reynaldo.
Era verdadeira invenção o que ele fazia, onde fosse, com o que fosse. No Suplemento Dominical e no Caderno B do Jornal do Brasil, matrizes de tudo o que se faria nessa área a partir daí. Na revista Senhor, no Correio da Manhã, no maravilhoso O Sol, do Jornal dos Sports (único impresso em tonalidade rosa), que todos lembram, esquecendo, entretanto, o mais importante, o Cultura JS efêmero e intenso.
Claro que nem sempre Reynaldo acertou na mão: o uso do espaço branco, primoroso no Correio, foi um fiasco no Diário da Noite, de São Paulo, porque o complemento praticamente inutilizava os apelos do jornal diário: não tinha manchetes, os títulos eram sumários e letras capitulares ficavam grandes demais. De qualquer maneira, o grafismo radical de Reynaldo apenas maquilou os dias finais dos Diários Associados de Assis Chateaubriand em São Paulo.
Parte do que a minha geração fez de bom, ela a deve ao que herdou da audácia, da inteligência e da sensibilidade de Reynaldo Jardim. Ele foi tão ousado e competente poeta quanto artista gráfico e jornalista, aptidões raras de combinar. Mergulhando na saga amazônica e, depois, nos úteros forenses, perdi de vista o cidadão que tanta influência exerceu sobre a minha visão de mundo e meu trabalho profissional – meu e de centenas de outros jornalistas, certamente, que não tiveram o mesmo talento do mestre e inspirador.
Por isso, já não cheguei a ver sua muito bem intitulada (ao estilo do autor) Sangradas Escrituras, opus máxima, que abrigou, em suas mais de mil páginas, toda a produção poética armazenada por Reynaldo Jardim (muita coisa deve ter-se perdido em suas andanças pelo país afora). Os selecionadores do Prêmio Jabuti cometeram a insensatez (uma das várias perpetradas nos últimos anos, talvez por injunções comerciais ou políticas) de dar-lhe o segundo lugar no gênero poesia, no ano passado.
Erraram desastradamente. Podia ser a maneira de reforçar a perenidade da vasta obra desse mago da criação humana. Como sua morte não recebeu um necrológio à altura da sua importância e a reunião dos seus poemas não foi capaz de tirar os jurados de sua letargia burocrática, talvez o que Reynaldo Jardim representou para a cultura brasileira não consiga ter o reconhecimento imediato. Mas quem tiver a ventura de encontrar algum dos seus livros, sobretudo Joana em Flor (que, acho, nunca foi reeditado), saberá por que me senti obrigado a escrever este artigo em tom estritamente pessoal. Precisava dizer ao mestre: muito obrigado, Reynaldo Jardim.
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