Lúcio Flávio Pinto
Articulista de O Estado do Tapajós
O Conselho Deliberativo da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) foi, durante todo o regime militar (1964-85), o principal instrumento que o governo federal usou para apregoar e executar os seus atos, que definiam os rumos da região.
Representantes de ministérios e outros órgãos oficiais, além dos governos estaduais e do empresariado (só muito depois, também dos trabalhadores), decidiam sobre os projetos econômicos. Aprovados, receberiam a colaboração financeira dos incentivos fiscais, a maior fonte de fomento regional, um crédito de pai para filho, às custas do tesouro nacional.
Em certa reunião, realizada em 1976, o representante das instituições científicas fez uma denúncia bombástica: a Volkswagen destruíra um milhão de hectares (ou 10 mil quilômetros quadrados, o equivalente ao dobro da área de Belém, a capital) no sul do Pará, onde formava uma fazenda de gado de 140 mil hectares, uma das maiores do país e do mundo.
O incêndio da mata, destruída para o plantio de capim, fora detectado por um satélite americano, o Skylab, que orbitava a 930 quilômetros da Terra. Segundo a Nasa, a agência espacial americana, era o maior incêndio já registrado documentalmente de todos os tempos.
Escandalizados, seus colegas do Inpe, de São Paulo, o instituto brasileiro equivalente, não sabiam o que dizer. Disse por eles o representante do Inpa, de Manaus, então o maior da ciência na Amazônia.
A afirmativa provocou o impacto de uma bomba, mesmo naqueles tempos de ditadura. A Amazônia foi o único lugar em que a multinacional alemã deixou de lado sua especialidade única, a montagem de veículos automotores, para se dedicar a uma atividade nova: a montagem de bois (o fracasso da empreitada pôs um ponto final na experiência).
Um milhão de hectares de fogo era incêndio para Nero algum botar defeito. Chocou mesmo aqueles que apoiavam a ocupação da Amazônia pela pata do boi, “filosofia” que referendou o maior processo de destruição de florestas da humanidade em tão curto período de tempo (meio século).
Mas o cientista estava errado. O incêndio consumira 1% da extensão que ele indicara. A brutal margem de erro esvaziou a repercussão da denúncia. De tal modo que ninguém atentou para um detalhe importante: o maior desmatamento praticado na região num único verão (pouco mais de seis meses do ano) alcançara 12 mil hectares.
Esse fogareu fora de responsabilidade do bilionário americano Daniel Ludwig, que assim substituiu, ao longo de mais de uma década, 100 mil hectares de floresta nativa, no Pará e Amapá, por um plantio homogêneo de espécies exóticas, no seu império no vale do rio Jari, do qual extrairia celulose.
Para realizar essa “façanha”, a Jari contava com mais de 8 mil “peões” e o maior conjunto de motosserras da América do Sul (comprava 700 delas a cada ano para repor estoque). Esse exército de cupins tecnológicos era necessário porque Ludwig rejeitava o uso do fogo. Já a Volks, com muito menos gente e menores recursos, podia chegar a resultado semelhante ao da Jari?
Os conhecedores da região sabiam que não. A desproporção de meios era evidente. E as próprias características amazônicas impossibilitavam a qualquer agente destruir um milhão de hectares numa única temporada de fogo – e de forma contínua. Mesmo para atingir 11 mil hectares de desmatamento, a Volks precisava de outro recurso além do fogo e da motosserra.
A empresa teria usado o agente laranja, a que outros desmatadores recorreram para se livrar mais rápido das árvores incômodas? Nessa época pululavam denúncias de que o desfolhante químico era contrabandeado para as frentes pioneiras amazônicas. Com o fim da guerra do Vietnam, onde os Estados Unidos o usaram intensamente, e a descoberta dos seus efeitos cancerígenos, o produto foi estigmatizado.
Milhares de toneladas passaram a circular no mercado negro. E certamente foram comercializadas na Amazônia, o lugar onde se travava outro tipo de guerra: contra a floresta. A denúncia contra a Volkswagen oferecia a oportunidade de comprovar um caso escandaloso dessa utilização.
O esvaziamento da acusação, a partir do momento em que o valor deixou de ser de um milhão de hectares e ficou em 11 mil hectares, impediu as pessoas de atentarem para o fato de que esse 1% era mais grave. Simplesmente porque, não sendo fruto de fantasia, era factível. A Volks jamais poderia ter queimado um milhão de hectares. Para chegar aos 11 mil em um semestre, podia ter-se valido do terrível agente laranja.
Lembro esse episódio por ser um antepassado de outro, que agora vivemos: atores de televisão à frente de uma campanha contra outro desses “grandes projetos” que assolam a Amazônia.
Não faltam motivos sólidos e graves para combater a construção da hidrelétrica de Belo Monte, empreendimento de 28 bilhões de reais (por ora) que avança pela promessa de se tornar a maior usina de energia limpa do mundo. Mas os argumentos apresentados pelas “estrelas” da TV Globo têm a consistência daquele milhão de hectares de fogo de 35 anos atrás.
Desmoralizados pelo contracanto de estudantes arregimentados por conta própria (ou de terceiros), os atores nem voltaram ao palco para a réplica. Depois de interpretada a “fala” brilhosa no teleprompter, nada mais tinham a dizer. Quando justamente aí teriam o que dizer.
Pode ser satisfatório para quem encara a “questão amazônica” a partir de fora (da região ou do país) simplesmente emitir uma opinião, subscrever um abaixo-assinado ou participar de um ato público. Essas pessoas solidárias depois seguirão a própria vida em locais que ou diferem muito ou estão bastante distantes da Amazônia. Mas para quem mora na região, os desafios exigem respostas práticas e, diante da rejeição do que é imposto, apresentar alternativas viáveis, não apenas encantadoras.
Os amazônidas precisam decidir se querem barrar seus maiores e mais inclinados cursos d’água. E, se querem, de que maneira e para quê. As respostas exigem conhecimento operativo ou operacional, o “saber como fazer”, o know-how dos pragmáticos americanos. Para fazer diferente, é necessário saber como fazer convencionalmente, pelo modo corrente. Infelizmente, muitos dos adeptos da boa causa não chegam a tanto. Ficam à superfície do conhecimento.
As hidrelétricas são um poderoso desafio para os amazônidas, talvez o maior do momento. Mesmo grandes barragens, porém, e ainda se considerando seus impactos mais difusos, representam ocupação de espaço muito menor do que a dos fazendeiros ou madeireiros, por qualquer critério que se analise. O contraste entre a combatividade em relação às barragens e certa inércia em relação aos maiores desmatadores e desorganizadores sociais é uma acusação, um libelo a exigir mais lucidez e resultados mais efetivos dos que se empenham em favor da Amazônia.
Coincidência ou não, a medida judicial que continha o avanço das empreiteiras foi suspensa no final do ano passado. Belo Monte avança para se tornar um fato consumado e irreversível, como aconteceu no distante rio Madeira com as usinas de Jirau e Santo Antônio. Muito combatidas, neste ano poderão começar a gerar energia para grandes consumidores a mais de 1.500 quilômetros de distância. A Amazônia deverá se tornar a maior província de energia bruta do Brasil. Colonial as usual.
Como diz o povo, o caminho para o inferno está pontilhado de boas intenções. Elemento necessário para começar a caminhada, nunca é a companhia de chegada. No meio do percurso é preciso agregar o elemento vital: o conhecimento. Sem ele, fala-se besteira e, ao invés de ajudar, complica-se ou leva-se a bandeira da causa ao naufrágio. Rota e ofendida.
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