Guilherme Guerreiro Neto
(3a. parte )
A fila para o almoço é formada a partir das 11h30. Noventa quilos de carne, 22 de arroz, dez de feijão, oito de farinha e 24 pacotes de macarrão. Para servir tanta comida, o trabalho na cozinha começa cedo. Caxiado desperta antes das 3h da madrugada, chama Clauber, e os dois preparam logo o café da manhã. Em seguida, fazem o arroz e põem o feijão no fogo.
Caxiado é Denildo da Rocha. Ganhou o apelido no tempo em que os cabelos eram grandes e enrolados. Ele comanda o fogão industrial e a despensa do Nélio Corrêa. Mora em Manaus com a mulher e dois filhos. Quando está navegando, liga para a família sempre que o navio aporta.
Desta vez, nem precisou ligar. A mulher, Aldeni, o acompanha. Ela estava em Santarém para cuidar da mãe doente. Uma viagem juntos para compensar as ausências do marinheiro em casa. “Nunca me acostumei, mas como não tem opção pra ele trabalhar…” Caxiado e Aldeni se conheceram em 2001 num barco. Ele ofereceu a ela suco de caju e um olhar conquistador. Passaram três anos sem se ver. Quando se reencontraram, decidiram casar.
Morena, com luzes desgastadas nos cabelos, Aldeni é a sétima mulher de Caxiado. Sétima, em 43 anos de vida. Ele ameniza a fama. “Tenho só três filhos”, se defende. “Quatro. Ele já é até avô”, ela retruca. Caxiado mexe o indicador de um lado a outro e se entoca entre as panelas para fugir da conversa.
O ajudante de cozinha Clauber Roberto também já foi namorador. “Antes de conhecer a minha mulher eu tinha uma em Manaus e uma em Belém. Sou um homem direito agora”, esclarece antes de engolir uma colherada de arroz com feijão e ovo frito. Mas, segundo Clauber, não há em águas amazônicas quem barre Agostinho no quesito mulherengo.
Mesmo casado, Agostinho Jorge anda sem aliança. Diz que foi roubado. Não nega que tenha outras namoradas, embora evite o assunto. Com 69 anos, o mais velho tripulante é magro, com raros cabelos no cocuruto e de poucas palavras. Espera pelo dia em que finalmente ficará de vez em terra firme. Já está aposentado, só que ainda não conseguiu liberação da empresa para encerrar o ciclo de mais de 30 anos vivendo pelos rios.
Ficar na praça de máquinas é uma tormenta para os tímpanos. A escada íngreme dá acesso ao espaço estrondoso e quente. Há quatro motores e uma estante de ferramentas. O serviço de Agostinho é ali: opera o maquinário, troca óleo e fica alerta para identificar qualquer problema.
Faz 18 anos que o Nélio Corrêa, feito em aço naval, começou a navegar. Chamava-se Cidade de Teresina. Dois, três anos depois, quando foi comprado pela Marques Pinto Navegação, ganhou o nome atual. Homenagem ao irmão dos donos da empresa, que morreu, ainda criança, soterrado após um muro desabar durante um show em Santarém. Hoje navega na rota Manaus-Santarém-Belém.
A tripulação é composta por 14 pessoas. O posto de gerente deixa a Cristiano Morais a incumbência de cuidar da administração do navio. Ele tem um escritório-dormitório no convés principal. É um sujeito pacato, de voz amena. Mas controlar uma viagem com tanta gente exige firmeza. “É muito melhor trabalhar com carga do que com passageiro.”
Gurupá, última escala antes de atracar em Belém. São 14h de sábado. Fábio é um dos vendedores que invade o barco atrás de alguns trocados. Com a alça do isopor por sobre o pescoço, o menino de 11 anos oferece “Cremozim”, um saquinho de sorvete cremoso nos sabores morango, uva e babalu. Logo o navio segue viagem e ele fica. O isopor mais leve nos ombros, um saco de moedas nas mãos.
O Rio Amazonas também fica para trás. Passamos pelo Rio Vieira e agora o afunilar das margens anuncia o início do Estreito de Breves. Na cabine de comando, Milton Melo avisa pelo rádio: “Atento, chamada geral, chamada geral. Aqui, navio Nélio Corrêa baixando no furo do Itamarati. Embarcações vindo no sentido contrário, atentas com o navio Nélio Corrêa.”
Nem a chuva com céu turvo tira a tranquilidade do comandante. A visita é mais do que esperada. “Essa chuva à tarde, isso aí é sagrado.” No estreito, o vento não é tão forte quanto no Amazonas. Águas agitadas, agora, só na entrada da baía. Mesmo com aparelhos importantes, como o radar e o ecobatímetro (usado para medir a profundidade dos rios), o olhar atento e a experiência ainda são os principais instrumentos de trabalho de Milton.
Sentado num banco de madeira, mantém a mão direita no timão. A luva azul com espaço vazado para os dedos é por conta do reumatismo. Dos 58 anos, são 35 enveredando pelos rios. E continua, mesmo aposentado. Nesse tempo, muita coisa mudou. A segurança para navegação, por exemplo, é cada vez melhor. Já o meio ambiente mostra sinais de desatino. “Nunca tinha visto uma cheia e uma seca como essas. O rio baixou tanto que apareceu praia que a gente nem conhecia. São as mudanças climáticas, né?”
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