Lúcio Flávio Pinto
Articulista de O Estado do Tapajós
O terceiro grande rio da Amazônia vai começar a ser desviado do seu curso natural para a construção de uma barragem de alta queda. Depois da hidrelétrica de Tucuruí, no Tocantins, e de Jirau e Santo Antônio, no Madeira, será a vez do Xingu receber a usina de Belo Monte. Somadas, elas terão um potencial de geração de energia equivalente a tudo o que está previsto para ser construído durante a vigência do novo Plano Decenal.
Se já estivessem funcionando, as quatro hidrelétricas amazônicas atenderiam a mais de um quarto do consumo nacional de energia (hoje, são 8%). E pelo menos mais cinco terão sua construção iniciada ainda nesta segunda década do século XXI. Assim, estará selada a “vocação” imposta à Amazônia, de ser província energética nacional?
Apesar de toda reação desencadeada no curso de cada um desses barramentos, o governo acabou consumando o seu propósito, de prosseguir na busca da exaustão da capacidade energética dos rios da Amazônia. O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) concluiu o licenciamento de implantação de Belo Monte na semana passada. Ignorou as advertências do Ministério Público Federal, contrário à concessão da autorização para o início efetivo das obras civis da usina, com a formação da ensecadeira de terra, e as reclamações de várias ONGs a instâncias internacionais, como a OEA e a ONU.
O governo está certo de que este é o melhor caminho para manter o ritmo de desenvolvimento do Brasil e que grande parte da argumentação contrária deriva do interesse de competidores do país no mercado mundial. Eles não querem que o Brasil seja uma potência internacional, posição que lhe seria assegurada pela ampla disponibilidade de energia, em especial de fonte hídrica, mais limpa e mais barata. Acha que já houve debate suficiente. Não está mais disposto a sujeitar sua vontade categórica às suscetibilidades de uma controvérsia nacional.
A Câmara dos Deputados convocou na semana passada, em Brasília, uma audiência pública para debater a hidrelétrica. Todos os convidados compareceram, exceto os que não podiam faltar: o governo federal, responsável pela concessão da obra, e o consórcio Norte Engenharia, vencedor da concorrência para construir a usina. Sem as duas presenças, o encontro se frustrou.
Tem sido esta a regra. Sempre que julgam desfavorável a situação, os responsáveis pelo empreendimento evitam o confronto e escapam à controvérsia. A história do projeto de aproveitamento energético da bacia do Xingu, com um dos maiores potenciais de geração do país, tem sido de desvios e ziguezagues.
As pedras de maior volume no caminho da execução do projeto foram atiradas pelo Ministério Público Federal do Pará. Em 10 anos, o MPF ajuizou 1l ações contra a realização da obra. Ganhou a maioria das iniciativas em primeira instância, mas perdeu todos os recursos no Tribunal Regional Federal. O juiz federal singular se sensibiliza pelos argumentos apresentados, mas o relator na instância superior e o colegiado revogam as decisões proferidas.
Depois de tantos entreveros judiciais, a Norte Engenharia representou contra o mais destacado dos seus adversários dentre os procuradores da república baseados em Belém, Felício Pontes. O Conselho Nacional do Ministério Público está apreciando a alegação da empresa, de que o procurador não tem isenção de ânimo para continuar a defender o interesse público no contencioso.
As provas? O que ele escreve contra Belo Monte no seu blog (hereticamente acoplado ao portal do MPF, segundo o entendimento dos denunciantes, que têm, contudo, seu próprio blog no portal do governo) e o que declara à imprensa, sempre disposta a ouvi-lo e lhe reservar bons espaços. A Norte Energia quer convencer os pares do procurador que ele se tornou obsessivo no combate a Belo Monte, não importando os motivos que possa vir a apresentar.
A empresa tem o direito de suscitar a suspeição de Felício Pontes por parcialidade, tendenciosidade ou interesse pessoal na causa. Mesmo que ele seja afastado, porém, é certo que seu substituto, do quadro do MPF no Pará, dará continuidade às demandas contra o projeto. Ele só prosseguirá se os recursos dos seus executores continuarem a ser acolhidos pelos tribunais.
Com a liberação do Ibama, finalmente, o rio Xingu começará a ser desviado do seu curso natural pela primeira grande intervenção humana no seu leito: a ensecadeira de terra. Não significará, entretanto, que a opinião pública estará convencida do acerto do projeto.
Depois de 35 anos de estudos e levantamentos de campo, pode-se perceber que a trajetória irregular de Belo Monte se deve tanto à resistência dos seus críticos e adversários quanto às inconsistências e inseguranças dos idealizadores da obra.
Quando não puderam evitar o debate público, imposto pela própria legislação ambiental, através das necessárias audiências públicas, que antecedem o licenciamento, eles recuaram em certos momentos e modificaram o desenho da hidrelétrica. Deram motivos, portanto, para o ceticismo, a desconfiança, a dúvida e a própria condenação ao projeto.
Na posição oposta, os “barragistas” e seus aliados desacreditam os adversários apontando-os como quintas colunas, defensores de interesses – ocultos e ilegítimos – de alienígenas, em especial de concorrentes do Brasil, e de serem “ecoloucos” ou, quando nada, poetas, visionários, pessoas completamente desligadas da realidade, desconhecedoras do que é construir uma grande usina de energia. Daí o tom arrogante e auto-suficiente dos engenheiros, como na representação contra o procurador federal paraense. Como o assunto é técnico demais, os engenheiros excluem do seu âmbito os não-iniciados na ciência da construção.
Abstraia-se toda a questão ecológica e etnológica. Admita-se, em princípio, que os “barragistas” têm razão: o represamento do Xingu não irá causar grandes danos ambientais (todos passíveis de prevenção ou reparação) e que o prejuízo às comunidades indígenas atingidas será mínimo, assim como à população de Altamira, a maior cidade da região, situada às proximidades das barragens. O balanço dos prós e contras de mais esse aproveitamento hidrelétrico seria, assim, superavitário. Logo, ele tem que ser executado. Para o bem de todos e felicidade geral da nação.
Mas funcionará mesmo? Esta pergunta, elementar, continua sem resposta. Na concepção original, Belo Monte, para ser viável, teria que contar com outros reservatórios a montante do rio. As três barragens previstas, anteriormente, inundando uma área cinco vezes superior à de Tucuruí, responsável pelo segundo maior lago artificial do Brasil, acumulariam água no inverno para suprir a usina durante o verão amazônico, quando a estiagem reduz o volume do Xingu em 30 vezes.
Sem essas bacias de acumulação rio acima e com a redução do lago da própria usina, Belo Monte não terá água suficiente para funcionar durante metade do ano. Por isso, sua potência firme (a energia disponível em média) será inferior a 40% da capacidade nominal, abaixo do ponto de viabilidade.
Para que o lago formado pela barragem de Belo Monte fosse o menor possível, foi necessário formar reservatórios nos dois canais artificiais de desvio de água para a casa de força, onde estarão as enormes turbinas de energia, 40 quilômetros rio abaixo, as maiores do mundo. A formação desses canais exigirá mais concreto do que o usado no Canal do Panamá, uma das maiores obras da engenharia mundial. Tais muralhas garantirão que não haverá vazamentos? É mais uma dúvida.
Uma – dentre tantas – que fizeram o orçamento de Belo Monte subir de 19 bilhões para 25 bilhões e, agora, 28 bilhões de reais, já chegando às estimativas mais pessimistas, de R$ 30 bilhões, que seus construtores diziam ser um absurdo. E sem contar mais uns 15 bilhões (ou 20?) na enorme linha de transmissão de energia, de três mil quilômetros, que não está incluída no cômputo da Norte Energia.
Fica, pois, a pergunta seminal: Belo Monte é viável mesmo? Como certos críticos têm procurado demonstrar, há dúvidas de natureza puramente técnica quanto à viabilidade operacional e econômica da usina. O aproveitamento energético da bacia do Xingu talvez seja a mais demorada e acidentada das trajetórias já registradas nos anais da construção de barragens no Brasil, que é um dos países com maior tradição nesse tipo de engenharia em todo mundo.
Até hoje nenhuma pá de areia foi lançada sobre o leito do rio para fazer surgir aquela que devia se tornar a terceira maior hidrelétrica do planeta, apesar de centenas de milhões de reais já gastos e de centenas de milhares de folhas de papel escritas a respeito.
O Ibama havia dado apenas uma licença ambiental prévia, no ano passado. O passo seguinte seria a concessão da licença de instalação. Mas havia tanta polêmica e litígio judicial que foi necessário inovar no rito processual e inventar uma etapa intermediária, a licença de implantação parcial. O consórcio construtor, a Norte Energia, pôde montar o canteiro da obra, mas não executá-la. Desde o dia 1º já pode colocar mãos à obra, ainda que tenha sido novamente questionado pela 11ª ação do MPF.
O estranho é que, três décadas depois do início dos primeiros levantamentos de campo sobre o potencial hidrelétrico da bacia, o projeto ainda provoque tantos questionamentos – e seus críticos aleguem que a decisão de construir a usina até hoje não foi debatida com a sociedade. Continuaria a ser uma caixa preta – ou de pandora. Dela, tudo poderia sair. Sobretudo, surpresas desagradáveis.
Em 1989, quando o governo era dono do projeto e imaginava estar prestes a colocá-lo em prática, Tuíra, uma índia da tribo guerreira dos Kayapó, esfregou seu terçado no rosto do assustado engenheiro Muniz Lopes, diretor da Eletronorte, durante o I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu. A imagem – de grande impacto visual e denso significado simbólico – correu mundo.
Era a civilização autoritária e insensível que tentava impor seus dogmas materiais (o “desenvolvimento”) sobre os direitos de povos ancestrais, abusando do seu poder e tecnologia. Ressurgências do sentimento de culpa original dos colonizadores brancos em relação ao bom selvagem rousseauniano bloquearam a continuidade do empreendimento. Tuíra venceu com seu facão as pesadas máquinas da Eletronorte.
Dez anos depois o projeto retomou o seu recurso, remodelado. Não era mais a visão categórica e impositiva dos regimes militares (que haviam chegado ao fim quatro anos antes). Por ela, o Xingu receberia seis barragens para gerar 20 mil megawatts de energia, à custa de inundar uma área de 18 mil quilômetros quadrados, quatro vezes e meia mais do que o maior lago artificial do país, o reservatório da hidrelétrica de Sobradinho, no rio São Francisco.
Ao invés disso, uma única barragem, já no baixo curso do rio, um dos afluentes do monumental Amazonas. E o reservatório seria reduzido a menos de 10% da previsão inicial, ou 1.225 mil quilômetros quadrados. Na verdade, menos ainda: descontando-se a área que o próprio Xingu inunda durante metade do ano, seriam 516 km2, dos quais tão somente 228 km2 seriam no próprio leito do rio (os outros 134 km2 resultariam do alagamento ao longo dos canais, que desviarão a água do seu curso natural para a imensa casa de força da usina, 40 quilômetros abaixo.).
Cada megawatt gerado por Belo Monte inundaria apenas 0,005 km2 contra uma média nacional de 0,49 km2. Para poupar a floresta, a cidade de Altamira e as terras indígenas de alagamento, a usina teria o menor de todos os reservatórios possíveis.
Em conseqüência, não poderá armazenar água no inverno para usar no verão, quando as vazões do Xingu chegam a diminuir 30 vezes. O regime de funcionamento da hidrelétrica será de água corrente, a “fio d’água”, como dizem os barrageiros.
É o que explica a grande diferença entre o que ela pode gerar no máximo, usando suas 20 máquinas (11.233 megawatts), e sua potência média, de 4.571 MW, descontando os meses em que ficará parada ou produzindo pouco. A relação é inferior ao ponto de viabilidade desse tipo de empreendimento, que é de 50%. Daí tantas dúvidas sobre a rentabilidade do negócio.
A perda de faturamento por causa dessa opção (a alternativa seria formar o maior lago possível para elevar a potência firme, garantindo o lucro do negócio) será de 300 milhões de reais ao ano, 50% a mais do que a compensação que será paga anualmente aos municípios afetados pela obra, o maior valor de indenização de uma obra pública na Amazônia.
Aparentemente, estaria atendida a principal crítica aos empreendimentos hidrelétricos na Amazônia, que provocam grandes inundações, como em Tucuruí, no Tocantins, também no Pará (3.100 km2) e Balbina, no Uatumã, no Amazonas (2.430 km2). Minimizar o impacto ambiental no Xingu foi tão prioritário que pode ter comprometido a viabilidade econômica do projeto. Por que, então, a obra continua sob tiroteio tão intenso, dentro e fora do Brasil? É outra pergunta à espera da resposta satisfatória. Por isso, a novela prosseguirá.
Nenhum comentário:
Postar um comentário