Lúcio Flávio Pinto
Articulista de O Estado do Tapajós
A maior propriedade rural do mundo começou a deixar de existir legalmente no final do mês passado. O juiz Hugo Gama Filho, da 9ª vara da justiça federal de Belém, mandou cancelar o registro imobiliário da Fazenda Curuá, que consta dos assentamentos do cartório de Altamira, no Pará. O imóvel foi inscrito nos livros de propriedade como tendo nada menos do que 4,7 milhões de hectares.
Seu suposto proprietário podia se considerar dono da 23ª maior unidade federativa do Brasil, com tamanho superior ao dos Estados do Rio de Janeiro, Alagoas, Sergipe e do Distrito Federal. Suas pretensões poderiam ainda exceder essas dimensões. Através de outros imóveis, pretendia alcançar uma área de 7 milhões de hectares, duas vezes e meia o tamanho da Bélgica, país onde vivem mais de 10 milhões de habitantes.
Como uma pessoa – física ou jurídica – consegue se apresentar como detentor de uma área dessas proporções e se manter nessa condição por tanto tempo, como aconteceu no caso da Fazenda Curuá?
Responder a esta pergunta de maneira satisfatória e eficaz pode contribuir para fortalecer o primado da lei nos “grotões” do país, as distantes e geralmente abandonadas fronteiras amazônicas. De forma inversa, manter tal anomalia significa perpetuar o domínio da violência e do respeito às regras da vida coletiva e ao superior interesse público.
Em primeiro lugar porque o Estatuto da Terra, editado pelo primeiro governo militar pós-1964, o do marechal Castelo Branco, continua em vigor. Esse código agrário sobreviveu à Constituição de 1988 e se revelou superior em confronto com as regras da Carta Magna. O estatuto, com seu propósito de modernizar o campo brasileiro (mesmo que de forma autoritária, à semelhança do que fez o general MacArthur com o Japão ainda semi-feudal, derrotado pelos americanos na Segunda Guerra Mundial), proíbe a constituição de propriedade rural com área acima de 72 mil hectares (ou 600 vezes o maior módulo rural, o destinado ao reflorestamento, com 120 hectares).
A Fazenda Curuá foi registrada com quase 60 vezes o limite legal. Por que o cartorário legalizou a matrícula do imóvel com sua fé pública, ele que é serventuário de justiça, sujeito à polêmica (e questionada pelo Conselho Nacional de Justiça da ministra Eliana Calmon) Corregedoria de Justiça do Estado?
A apropriação ilegal de terras públicas, fenômeno a que se dá a qualificação de grilagem, é simples, embora de aparência complexa para o não iniciado nos seus meandros. Ainda mais porque lendas são criadas em torno da artimanha dos espertos e passam a ser apresentadas como verdade.
Muita gente acredita, por exemplo, que a expressão grilagem se deve à prática dos fraudadores de colocar papéis para envelhecer artificialmente em gavetas com grilos.
A verdade é menos engenhosa. A origem é romana e diz respeito ao fato de que a terra usurpada serve à especulação imobiliária e à formação de latifúndios improdutivos. Tanta terra não cultivada acaba se tornando pasto para grilos. Uma maneira de estigmatizar de forma popularizada o roubo de terras públicas, que tantos danos causa à nação.
O espantoso, no caso da Fazenda Curuá, é que o golpe tenha se mantido por tantos anos. A ação de cancelamento foi proposta em 1996 pelo Instituto de Terras do Pará. Apesar de ter provado que nenhum título de propriedade havia na origem do imóvel, o Iterpa não conseguiu impedir que a justiça estadual mantivesse o registro incólume, decidindo sempre contra o órgão público.
Até que o Ministério Público Federal e outros órgãos da União, em função da superposição das terras griladas com unidades de conservação, reservas indígenas e assentamentos rurais, conseguiram desaforar o processo para a justiça federal, que, afinal, reconheceu a ilegalidade da propriedade e determinou o cancelamento do registro.
Essa tramitação acidentada e pedregosa seria evitada se a justiça do Pará tivesse realmente examinado as provas dos autos. Neles está demonstrado que o uso das terras no rico vale do Xingu, onde está sendo construída a hidrelétrica de Belo Monte e agem com sofreguidão madeireiros e fazendeiros, começou em 1924, sem nunca gerar domínio.
Moradores da região foram autorizados a explorar seringueiras e castanheiras localizadas em terras públicas, através de concessões com tempo determinado de vigência e para fim específico, o extrativismo. Exaurida a atividade produtiva, a área deixou de ter uso a as concessões caducaram, mas algumas pessoas decidiram inscrevê-la em seu nome.
Como os cartórios não se preocupavam (e, em sua maioria, continuam sem se preocupar) com o rigor da iniciativa, até mesmo dívidas em jogo deram causa à transmissão da inexistente propriedade de um detentor para outro. Cadeias sucessórias se formaram sem uma prova do desmembramento das terras do patrimônio público, através de um instrumento adequado de domínio.
Cecílio Rego de Almeida, já falecido |
A lesão ao patrimônio público por causa dessas práticas ilícitas permaneceu latente até que uma das maiores empreiteiras do país colocou os olhos nesse mundo de águas, florestas, solos e animais. A C. R. Almeida, criada no Paraná por um polêmico engenheiro, Cecílio do Rego Almeida, que nasceu no próprio Pará, comprou uma firma de Altamira, a Incenxil, por preço vil (sem sequer pagá-lo por inteiro).
No ativo da firma estavam as terras cobiçadas, que seriam usadas para um projeto ecológico, no mercado de carbono (empresas estrangeiras poluidoras pagariam para manter a floresta intacta). Não conseguindo regularizá-las pela via legal, por ser impossível, o empreiteiro decidiu se apossar da área à base do fato consumado e passando por cima de quem se colocasse no seu caminho.
Cecílio Almeida montou uma pequena base no local, contratou seguranças, seduziu os índios vizinhos e fez uso da máquina pública estadual, que se amoldou à sua vontade. Os que resistiram à grilagem foram levados às barras dos tribunais, que sempre decidiram em favor do grileiro, da primeira à última instância da sua jurisdição.
Os magistrados da justiça estadual não se sensibilizaram sequer pela publicação do Livro Branco da Grilagem, editado pelo Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário, que não deixava dúvida sobre a fraude praticada. Nem pelos resultados das comissões parlamentares de inquérito instauradas em Belém e em Brasília. Ou pelas seguidas manifestações de todas as instâncias do poder público, estadual e federal. Enquanto atuou sobre o caso, a justiça do Pará ficou ao lado do grileiro e, a partir da sua morte, em 2008, de seus herdeiros.
A primeira investida judicial de Cecílio Almeida foi através da justiça de São Paulo. Fui um dos processados. Mas como o foro legal da ação era Belém, por ser a sede deste jornal, pedi e consegui o desaforamento. Tinha que fazer isso, mas me arrependi. Com decisões límpidas e sólidas, a justiça paulista rejeitou as ações contra a revista Veja e os demais indiciados, incluindo o advogado paraense Carlos Lamarão Corrêa.
Carlos era diretor do departamento jurídico do Iterpa quando me convocou, 15 anos atrás, para ajudá-lo a preparar uma ação de cancelamento do registro imobiliário da Fazenda Curuá. Eu já acompanhava a pilhagem que a C. R. Almeida tentava fazer do patrimônio público fundiário. Por isso, pude dar minha contribuição para que a peça apresentada à justiça do Pará tivesse a consistência necessária para ser acolhida.
O golpe, se consumado, significaria o maior roubo de terras da nossa história. A empreiteira ficaria com parcela expressiva da valorizada Terra do Meio, região do vale do Xingu onde subsiste a maior reserva de floresta nativa da margem direito do Amazonas em território paraense. A fraude era evidente.
Foto: Fazenda Curuá/mariorangelgeografo.blogspot.com |
Mas a justiça do Pará não só não se convenceu dos argumentos e deu ganho de causa ao grileiro como me condenou, por ter sustentado no meu Jornal Pessoal que o truculento C. R. Almeida era um pirata fundiário. Fui sentenciado de forma iníqua e vergonhosa por um juiz substituto, que assumiu a 1ª vara cível do fórum de Belém apenas por um dia para decidir sobre um só e único processo: o meu.
O juiz Amilcar Bezerra Guimarães determinou que eu indenizasse o grileiro por lhe causar dano moral. Sua sentença foi confirmada várias vezes pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará, indiferente ao direito e às regras processuais que suscitei na minha defesa.
Agora, finalmente, juiz Hugo Gama Filho faz justiça à verdade, ao interesse público e às normas do direito. Ao mandar cancelar o fraudulento registro imobiliário e devolver as terras aos seus verdadeiros donos, usurpados pelo empresário, cujos objetivos foram mantidos pelos seus herdeiros, não deixa mais dúvida: o grileiro é grileiro.
O problema é que dar-lhe essa denominação é motivo para punição pela justiça do Estado do Pará, insensível ao clamor dos fatos e do interesse da coletividade paraense. Ah, os fatos: raramente penetram os umbrais do TJE.
A despeito da manifestação de mérito da justiça federal estabelecida no Pará, para os magistrados paraenses, que decidiram as sucessivas contendas processuais – até o esgotamento da instância jurisdicional – entre o grileiro e o jornalista, que o denunciou desde a primeira hora, o jornalista é quem deve continuar a ser punido. Pago esse preço desde que, por vingança, pelo prejuízo que acarretei ao empresário, acostumado que estava a ganhar latifúndios de dinheiro através de iniciativas audaciosas, ele passou a me perseguir.
Foi preciso que o processo chegasse à justiça federal para, finalmente, 15 anos depois da propositura da ação pelo Iterpa, secundado por outros agentes públicos, a situação se invertesse. Não é ainda uma decisão definitiva. Os herdeiros da C. R. Almeida deverão recorrer. Mas já sem o registro cartorial que lhes permitia manipular terras como se fossem os donos do 23º maior Estado brasileiro.
Quem sabe, a partir de agora, a intensa grilagem, um dos males que assola a Amazônia, não possa refluir?
Nenhum comentário:
Postar um comentário