quarta-feira, 18 de maio de 2011

Onde os rios levam vidas em percurso (Final)

Guilherme Guerreiro Neto

 
Canoas, avistadas ao longe, se aproximam. Proliferam-se com rapidez. Mulheres remam para alcançar o navio. Junto delas, crianças. Num implorar amazônico, os curumins soltam gritos agudos e balançam os bracinhos como se fossem asas. Dá-se início a um ritual de solidariedade feito sem palavras. Passageiros e tripulantes arremessam sacos plásticos com roupas usadas. Os sacos caem no rio e logo vão para as mãos de novos donos. A velha roupa de uns, vira roupa nova para outros.

    Ribeirinhos em busca de  novas roupas velhas
                           

Prelúdio de mais uma noite. A animação, atiçada desde cedo pelas cervejas, aumenta ao pôr do sol. O tecnobrega, som originário da periferia de Belém, quase monopoliza o DVD do bar no passadiço. Os japoneses entram na farra; dançam e entornam latinhas ao lado dos brasileiros. Com as de sexta, Francisco Vieira contabiliza 30 cervejas esvaziadas por ele. É hora de parar. “Tem que chegar lá limpo. A patroa é meio braba comigo.”
Há muitos motivos que levam as pessoas a fazer de barco um percurso como este, de Santarém a Belém. Ir por terra é improvável. Não existe estrada que faça ligação direta entre as cidades. É preciso descer até a Rodovia Transamazônica e passar por Altamira e Tucuruí, o que além de ser desvio de caminho é baita dor de cabeça, considerando as péssimas condições da estrada.
Ir de avião é mais caro – às vezes, pouca coisa – e deixaria muitos que quase não saem da própria cidade com frio na espinha só de pensar em voar. A economia de tempo é grande: os dois dias na embarcação viram uma hora e 20 minutos de voo.
No navio é diferente. Os rios são extensões da casa dos moradores da região – embora haja quem fique apreensivo, como Jacina. Pode-se levar muito mais bagagem do que seria permitido por companhias aéreas. Francisco acrescenta uma justificativa: “Eu prefiro vir de barco porque a gente faz muita amizade. É uma economia e uma diversão. Melhor do que ficar sentado no avião sem falar com ninguém.”

Odirene da Silva e Rogério Soares


Calados, eles entram no convés. Parecem ter saído do nada e se materializado nos fundos da embarcação. Rogério Soares e Odirene da Silva estão casados há nove meses. Vivem em comunidade perto de Breves, no Rio Tajapuru. Foram visitar a avó dele e, na volta para casa, conseguiram enganchar a canoa no Nélio Corrêa. Uma carona para diminuir o tempo gasto no caminho.
Os dois têm uma casa de madeira com fogão à lenha. Sem geladeira, sem televisor, sem rádio. Ainda não chegou luz elétrica por lá. Odirene, com 17 anos, senta no batente do navio que dá para o rio e apoia os pés descalços sobre a mesa da cozinha. Rogério mantém o braço esquerdo suspenso, seguro a uma trave de aço, enquanto fala da vida. Ele não sabe ler. Sobrevive da venda de açaí a três reais o litro.
“Qual é o teu sonho?” A pergunta que faço o paralisa. Rogério abre um sorriso largo, mas não responde. Fica pensativo. É como se, aos 22 anos, ele já tivesse desistido de sonhar. Ou nem isso: desistir é trunfo de quem, um dia, se permitiu olhar para além do presente. Mesmo diante da escuridão, eles sabem quando é hora de ir. Partem em silêncio, como chegaram. Talvez pensando nos sonhos que não têm.
De manhã, mais um pequeno barco encosta e é amarrado no navio. Pai, Raimundo dos Santos, e filho, Carlos Alberto, estão cercados por cadeiras feitas de cupiúba. Vieram vender a mercadoria, os preços variam de 15 a 30 reais. Um fica embaixo enquanto o outro se pendura no Nélio Corrêa para passar as cadeiras.

Raimundo e Carlos Alberto dos Santos


Carlos Alberto faz o segundo ano do ensino médio. Quer ser engenheiro ou trabalhar com eletrônica. Veste camiseta vermelha e bermuda jeans de barra esgarçada. No rosto, a marca de um acidente de infância. Aos 11 anos, pegou a espingarda do tio. A arma estava carregada e, num descuido, disparou. A bala atingiu o olho direito do menino, sem chance de recuperação. Ele e o pai vão embora com cadeiras sobrando da venda de domingo.
Passa o Rio Pará. A entrada na Baía do Guajará é tranquila, sem sobressaltos. O fim da viagem se aproxima e os passageiros têm reclamações a fazer. José Edson de Oliveira, pintor, não gostou da alimentação nem do espaço apertado para dormir. As belas paisagens que circundam o navio por todo o percurso pouco aliviam os problemas. “Era para ser um paraíso, mas é um inferno.”
O comerciante Raimundo Costa também reclama da superlotação. Na primeira noite, dormiu pouco por conta do aperto. A Capitania dos Portos vistoriou o navio antes da saída de Santarém. Mas, segundo a tripulação, basta não ter redes atadas nas laterais para que a embarcação seja liberada. “Eles (tripulantes) pediram pra tirar as redes que tavam nos corredores pra Capitania achar que tava tudo normal. Tive que tirar a minha”, conta Raimundo.
***
A chuva de sempre cai no desdobrar da tarde. Já se vê Belém surgir por trás de uma ponta de floresta. Para um homem da Amazônia urbana, como eu, é um novo modo de enxergar a cidade. Os passageiros desatam as redes, juntam a bagagem e, de barba feita e cabelos penteados, se prepararam para desembarcar. Fim do encontro traçado pelos rios. As vidas, que por dois dias dividiram o mesmo convés, agora seguem percurso separadas.

A bandeira nacional hasteada de ponta-cabeça


A bandeira nacional continua a tremular na popa. De ponta-cabeça, como esteve durante toda a viagem. Por aqui, é assim: quem é da Amazônia vive num Brasil invertido, do avesso. Visto ora como exótico, ora como quintal, ora como intocável. Um Brasil dessa gente que constrói o país com discrição, sem reconhecimento ou recompensa. E continua a navegar.

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Acompanhe as postagens anteriores desta série.

2a. parte
3a. parte

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