Canoas, avistadas ao longe, se  aproximam. Proliferam-se com rapidez. Mulheres remam para alcançar o  navio. Junto delas, crianças. Num implorar amazônico, os curumins soltam  gritos agudos e balançam os bracinhos como se fossem asas. Dá-se início  a um ritual de solidariedade feito sem palavras. Passageiros e  tripulantes arremessam sacos plásticos com roupas usadas. Os sacos caem  no rio e logo vão para as mãos de novos donos. A velha roupa de uns,  vira roupa nova para outros.
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| Ribeirinhos em busca de novas roupas velhas | 
Prelúdio de mais uma noite. A animação, atiçada desde cedo pelas  cervejas, aumenta ao pôr do sol. O tecnobrega, som originário da  periferia de Belém, quase monopoliza o DVD do bar no passadiço. Os  japoneses entram na farra; dançam e entornam latinhas ao lado dos  brasileiros. Com as de sexta, Francisco Vieira contabiliza 30 cervejas  esvaziadas por ele. É hora de parar. “Tem que chegar lá limpo. A patroa é  meio braba comigo.”
Há muitos motivos que levam as pessoas a fazer de barco um percurso  como este, de Santarém a Belém. Ir por terra é improvável. Não existe  estrada que faça ligação direta entre as cidades. É preciso descer até a  Rodovia Transamazônica e passar por Altamira e Tucuruí, o que além de  ser desvio de caminho é baita dor de cabeça, considerando as péssimas  condições da estrada.
Ir de avião é mais caro – às vezes, pouca coisa – e deixaria muitos  que quase não saem da própria cidade com frio na espinha só de pensar em  voar. A economia de tempo é grande: os dois dias na embarcação viram  uma hora e 20 minutos de voo.
No navio é diferente. Os rios são extensões da casa dos moradores da  região – embora haja quem fique apreensivo, como Jacina. Pode-se levar  muito mais bagagem do que seria permitido por companhias aéreas.  Francisco acrescenta uma justificativa: “Eu prefiro vir de barco porque a  gente faz muita amizade. É uma economia e uma diversão. Melhor do que  ficar sentado no avião sem falar com ninguém.”
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| Odirene da Silva e Rogério Soares | 
Calados, eles entram no convés. Parecem ter saído do nada e se  materializado nos fundos da embarcação. Rogério Soares e Odirene da  Silva estão casados há nove meses. Vivem em comunidade perto de Breves,  no Rio Tajapuru. Foram visitar a avó dele e, na volta para casa,  conseguiram enganchar a canoa no Nélio Corrêa. Uma carona para diminuir o  tempo gasto no caminho.
Os dois têm uma casa de madeira com fogão à lenha. Sem geladeira, sem  televisor, sem rádio. Ainda não chegou luz elétrica por lá. Odirene,  com 17 anos, senta no batente do navio que dá para o rio e apoia os pés  descalços sobre a mesa da cozinha. Rogério mantém o braço esquerdo  suspenso, seguro a uma trave de aço, enquanto fala da vida. Ele não sabe  ler. Sobrevive da venda de açaí a três reais o litro.
“Qual é o teu sonho?” A pergunta que faço o paralisa. Rogério abre um  sorriso largo, mas não responde. Fica pensativo. É como se, aos 22  anos, ele já tivesse desistido de sonhar. Ou nem isso: desistir é trunfo  de quem, um dia, se permitiu olhar para além do presente. Mesmo diante  da escuridão, eles sabem quando é hora de ir. Partem em silêncio, como  chegaram. Talvez pensando nos sonhos que não têm.
De manhã, mais um pequeno barco encosta e é amarrado no navio. Pai,  Raimundo dos Santos, e filho, Carlos Alberto, estão cercados por  cadeiras feitas de cupiúba. Vieram vender a mercadoria, os preços variam  de 15 a 30 reais. Um fica embaixo enquanto o outro se pendura no Nélio  Corrêa para passar as cadeiras.
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| Raimundo e Carlos Alberto dos Santos | 
Carlos Alberto faz o segundo ano do ensino médio. Quer ser engenheiro  ou trabalhar com eletrônica. Veste camiseta vermelha e bermuda jeans de  barra esgarçada. No rosto, a marca de um acidente de infância. Aos 11  anos, pegou a espingarda do tio. A arma estava carregada e, num  descuido, disparou. A bala atingiu o olho direito do menino, sem chance  de recuperação. Ele e o pai vão embora com cadeiras sobrando da venda de  domingo.
Passa o Rio Pará. A entrada na Baía do Guajará é tranquila, sem  sobressaltos. O fim da viagem se aproxima e os passageiros têm  reclamações a fazer. José Edson de Oliveira, pintor, não gostou da  alimentação nem do espaço apertado para dormir. As belas paisagens que  circundam o navio por todo o percurso pouco aliviam os problemas. “Era  para ser um paraíso, mas é um inferno.”
O comerciante Raimundo Costa também reclama da superlotação. Na  primeira noite, dormiu pouco por conta do aperto. A Capitania dos Portos  vistoriou o navio antes da saída de Santarém. Mas, segundo a  tripulação, basta não ter redes atadas nas laterais para que a  embarcação seja liberada. “Eles (tripulantes) pediram pra tirar as redes  que tavam nos corredores pra Capitania achar que tava tudo normal. Tive  que tirar a minha”, conta Raimundo.
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A chuva de sempre cai no desdobrar da tarde. Já se vê Belém surgir  por trás de uma ponta de floresta. Para um homem da Amazônia urbana,  como eu, é um novo modo de enxergar a cidade. Os passageiros desatam as  redes, juntam a bagagem e, de barba feita e cabelos penteados, se  prepararam para desembarcar. Fim do encontro traçado pelos rios. As  vidas, que por dois dias dividiram o mesmo convés, agora seguem percurso  separadas.
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| A bandeira nacional hasteada de ponta-cabeça | 
A bandeira nacional continua a tremular na popa. De ponta-cabeça,  como esteve durante toda a viagem. Por aqui, é assim: quem é da Amazônia  vive num Brasil invertido, do avesso. Visto ora como exótico, ora como  quintal, ora como intocável. Um Brasil dessa gente que constrói o país  com discrição, sem reconhecimento ou recompensa. E continua a navegar.
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