domingo, 4 de julho de 2010

O Strip-tease moral da eleição no Pará

Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal

Nem o mais cínico dos visionários poderia prever o que acontece no Pará como preparação para a eleição de outubro. Biografias, princípios e pudor foram deixados de lado na volúpia pelo poder. Os candidatos só pensam em si. E o eleitor: aceitará essa esbórnia?

A sociedade paraense está moralmente podre.


O mau cheiro mais forte exala da sua prática política. Ela nunca foi exatamente um exemplo de boa educação. Mas resvalou neste ano para um dos mais baixos patamares de todos os tempos. Há mais informações em circulação, mais mecanismos e instituições de controle para evitar vícios como o famoso “mapismo”, responsável pela má fama que o Pará adquiriu: de ser sempre o último Estado a concluir a apuração de votos (o retardamento minava a vigilância e favorecia a manipulação dos votos, que dormiam sob temerária proteção estatal).

Mesmo assim, a temporada eleitoral de 2010 se tornou numa escancarada operação de compra e venda de apoios e votos (consciência se tornou produto raro na praça). No atual estágio, ainda preparatório, as transações se restringem às lideranças. O mercado de legendas e de nomes parece não admitir mais exceções: todos aceitam qualquer proposta, desde que atenda aos seus interesses. Depois, será a caça aos votos, a qualquer preço. O limite da responsabilidade já foi ultrapassado. Agora é o vale-tudo. Programas, projetos, idéias e mesmo biografias não interessam. Tudo está no pregão. Só o que interessa é vencer.

Para tentar eleger o seu sucessor na eleição de 1990, o governador Hélio Gueiros recorreu à farta distribuição de prêmios e brindes, entregues sob o roto disfarce de sorteios na operação “caminhando com o povo”. Parecia o máximo de cinismo. Já não é mais. A governadora Ana Júlia Carepa percorreu o interior do Estado entregando seu “kit faz estrada”, composto por patrulhas mecanizadas, que são o sonho de consumo dos prefeitos em véspera de eleição, além de algumas centenas de casas construídas às pressas e motocicletas. As 503 patrulhas mecanizadas (tratores, motoniveladoras, caminhões) custaram 140 milhões de reais, obtidos junto ao BNDES.

O governo e a bancada da oposição na Assembléia Legislativa se envolveram num cabo-de-guerra em torno de 366 milhões de reais, que o Estado também tomaria emprestado do BNDES, com as torneiras abertas para irrigar com bilhões de reais o terreno eleitoral do PT e aliados. A idéia do governo era entregar uma ração a cada um dos municípios conforme seus próprios critérios, sem interferência externa.

O PMDB, num lance de sagacidade, que tem a ver com a disputa pelo poder, mas não com a natureza do investimento público, transferiu a maior parte da prerrogativa do governo para as prefeituras. Alegando normas técnicas do banco, o governo deu novo golpe depois da aprovação do projeto no legislativo, ao fim de longas negociações, e retomou a rédea do dinheiro, vetando as mudanças que já aceitara. Não havia plano de aplicação no texto aprovado pelo legislativo e os gastos incluíam despesas correntes, quando a norma bancária restringe a aplicação a investimentos. Não havia o menor resquício de planejamento. Mas havia o interesse eleitoreiro – e é o que basta na saison.

O uso sem pudor da máquina pública começou a arrancar a governadora Ana Júlia do lodo no qual ela vinha patinando, em função do seu alto índice de rejeição. Tantos tratores, dinheiro, casas e outras “bondades” de temporada, subitamente, encheram de legendas o balaio do PT, até então ameaçado de ficar vazio. O fisiologismo arrebentou todas as barragens de contenção e autorizou siglas historicamente conflitantes a se juntarem, como se nada houvesse a distingui-las. O PT comanda um arco antes inimaginável de 12 legendas, enquanto, do outro lado, PMDB e PSDB caminham quase sozinhos.

O PP, controlado pelo mais longevo dos políticos paroquiais em atividade no Pará, o deputado federal Gerson Peres, e do qual passou a fazer parte o primeiro político condenado em primeira instância judicial por pedofilia, o ex-deputado estadual Luiz Afonso Sefer, se tornou par da governadora para o que der e vier, literalmente. O DEM do deputado Vic Pires Franco, que tratava Ana Júlia com desprezo e ironia, também se ofereceu para a composição, disposto até a arrancar uma liberação da direção nacional do partido, que colocou o PT no índex das alianças. Depois de ironizar e esnobar a todos, o partido do casal Pires Franco não conseguiu realizar seu desejo, de garantir a disputa em coligação de uma das vagas para o Senado. Só lhe ofereceram a vice-governadoria, reprise da experiência de Valéria junto a Simão Jatene, do PSDB.

Parece que ninguém levou muito a sério os elevados índices de preferência que ela teria alcançado nas pesquisas do Ibope, intensamente divulgadas no blog do marido (suspenso para não prejudicar as tratativas pré-eleitorais, embora ele salientasse o caráter jornalístico do seu espaço virtual). Ainda parece ecoar o que aconteceu dois anos atrás: favorita nas prévias, Valéria terminou em melancólico quarto lugar na eleição para prefeito de Belém. Foi a desmoralização das pesquisas. Mas ela vai tentar de novo.

Já o atual vice-prefeito de Belém, Anivaldo Vale, do PR, beneficiado pela reeleição de Duciomar Costa, do PTB, no intervalo de dois anos, entre a disputa municipal e a eleição geral de 2010, passou de inimigo mortal para afetuoso companheiro de chapa de Ana Júlia. Uma mutação tão rápida que as bancadas na Câmara Municipal nem foram avisadas para ajustar seus papéis ao novo enredo. E isso importa? Se o que importa é acender a luz do poste eleitoral que outrora atendia pelo nome de Dilma Roussef (e hoje é figura estelar no eleitorado), impondo essa regra a todo o PT, localmente essa diretriz é conjugada com o mesmo empenho pela reeleição de Ana Júlia.

Mesmo com um índice de rejeição que vinha se mantendo acima de 50%, ela já pode ser considerada como a favorita para o 1º turno, que provavelmente não decidirá a disputa, exigindo a realização de nova eleição? Em tese, sim. A governadora ainda tem trunfos na manga para usar, graças ao controle da máquina pública e à sua utilização abusiva, como a indústria da nomeação de assessores especiais, em plena atividade. Apresentando a perspectiva de muitos milhões de argumentos, conseguiu com essa prosopopéia a adesão de ninguém menos do que Duciomar Costa, com seu PTB de ocasião, algo que nem o mais fisiológico dos petistas teria imaginado.

Os únicos adversários de peso de Ana Júlia são o ex-governador Simão Jatene, do PSDB, e o presidente da Assembléia Legislativa, Domingos Juvenil, pelo PMDB. A situação teria uma correlação diferente se Jader Barbalho tivesse encarado o desafio de se candidatar ao governo pela quarta vez. Ele é um dos líderes nas pesquisas, mas seu realismo político e sua vulnerabilidade o fizeram optar pelo também problemático retorno ao Senado. Ele pode acabar excluído pela primeira vez de uma disputa eleitoral se a “lei da ficha limpa” tiver aplicação radical.

O Liberal, seu maior inimigo, suscitou a hipótese de ele poder ser enquadrado como um “ficha suja” e não poder participar da eleição, por ter renunciado em 2002 ao mandato de senador para não ser cassado. Não é uma hipótese impossível, mas a justiça brasileira se transformou numa caixa de pandora: dela tudo pode sair. Como a extinção do processo contra Duciomar Costa pelo Tribunal Regional Eleitoral, não pelo exame do mérito da sua cassação, decidida em 1º grau, mas por uma filigrana formal, que caracterizou a perda do prazo pelo PMDB, autor da ação. O tribunal apostou numa tese para lá de temerária e, mais uma vez, foi desautorizado pelo TSE, que lhe devolveu o processo para que examine o mérito, ao invés de se desviar da questão através de preciosismos sem relevância. O tribunal ficou sob a suspeita de proteger indevidamente o alcaide belenense.

Mais uma vez restou a sensação de que, mais importante do que o conteúdo dos autos e a apreciação dos julgadores, pesou na deliberação do tribunal eleitoral do Pará providências de bastidores. Elas já podiam ser deduzidas pela nomeação do procurador municipal Luiz Neto como juiz eleitoral, por decreto assinado pelo presidente Lula, pouco antes do julgamento da cassação de Duciomar. Claro que o novo juiz, respeitado como advogado, não participou nem participaria da sessão. Sua nomeação era apenas um sinal, ou um recado. Na direção de composições, capazes de surpreender o mais cético dos observadores e escandalizar o mais vivido analista.

A movimentação pré-eleitoral, se comparada a um jogo de futebol, está seguindo uma regra única: do joelho para cima, tudo é canela. O passado, a coerência e até o pudor foram deixados de lado. O ex-governador Almir Gabriel, que defendia a permanência da União pelo Pará, liderada pelo seu PSDB, depois de 12 anos no governo, como a melhor maneira de mudar a face do Estado pela aplicação de projetos “estruturantes” para modificar sua fisionomia colonial, atirou todo esse discurso na lata de lixo. Seu objetivo obsessivo (e já patológico) passou a ser a destruição da candidatura do também ex-governador Simão Jatene, o único nome com densidade eleitoral de que dispõe o PSDB.

Com uma aparência relaxada (camiseta regata sem manga, deixando à mostra suas axilas, usada mesmo à mesa do café da manhã, cabelos em completo desalinho e olhos esbugalhados), que sugere muita coisa, menos lucidez, Almir Gabriel se reaproximou daquele que foi o Judas da malhação popular durante o império dos tucanos paraenses, tratado por ladrão e nocivo. A fotografia dos dois ex-inimigos reunidos tão cordialmente no apartamento de Gabriel é um dos documentos visuais mais representativos daquilo a que se reduziu a política estadual.

Jader Barbalho não tem nada a perder com essa surpreendente adesão ao seu candidato a governador, Domingos Juvenil. Simplesmente a aceitou, sem endossar qualquer coisa que seu ex-novo aliado tenha dito ou venha a dizer. Se Almir ainda tiver votos e os transferir para Domingos Juvenil, o PMDB sairá ganhando, sem que com isso se incompatibilize para um acordo – com o PSDB ou o PT – no segundo turno. Se o ex-governador não for mais do que um tigre de papel, que cavou o abismo com seus pés, conforme a música de Nélson Cavaquinho, Jader pelo menos terá desmoralizado aquele que tanto o hostilizou e agora o procura. Não para que se juntem em torno de uma plataforma de realizações pelo Pará, mas para enfraquecer Jatene, que se comportou como um traidor em relação ao seu padrinho, responsável por transformá-lo de poste eleitoral em governador – atitude de que o próprio Almir foi acusado por Jader, que o fez prefeito e o elegeu senador.

Resta saber como reagirá o nobre eleitor a esse jogo tão medíocre e sujo. Por enquanto, ninguém o levou em consideração. Ele é o russo da parábola futebolística de Garrincha diante do técnico Vicente Feola. Os eleitores farão o que seus líderes lhes mandam fazer ou se chocarão com tanta mudança fisiológica?