Lúcio Flávio Pinto
Articulista de O Estado do Tapajós
Há 16 anos leio regularmente o Jornal Pessoal para ficar informado de suas críticas e opiniões. Algumas vezes senti vontade de reagir e escrever um comentário, discordando de suas posições ou afirmações, mas geralmente seus escritos me estimulam a pensar, refletir e debater com outras pessoas.
No artigo "Redivisão do Pará: 2 e não 3 Estados?" (Jornal Pessoal nº 492) fiquei com uma sensação de insatisfação e discordância muito forte sobre o argumento usado de divisão de pessoas em "nativos" e "imigrantes". Podendo abordar o tema a partir de vários enfoques importantes (considerando as terras indígenas, as bacias hidrográficas, a (in)eficiência administrativa, ampliação/restrição a participação democrática, relações geopolíticas norte-sul dentro do Brasil etc.), Lucio optou pelo apelo à xenofobia, bastante atual no mundo atual (São Paulo, Europa, Noruega, Califórnia...).
Trata-se de uma argumentação que procura diferenciar os movimentos e até as identidades das duas áreas que pretendem se tornar Estados independentes a partir da suposta legitimidade ou não de seus habitantes para decidir sobre seu futuro devido sua descendência, nascença e identidade estadual/regional.
Além de a argumentação ser baseada em fundamentos fracos, tanto conceituais quanto fatuais, ela mostra uma posição complicada sobre território, identidade e legitimidade.
Um problema conceitual é definir o que é um "paraense". Não há nenhuma definição, mas o artigo fala em "paraenses de gerações ou imigrantes que se enraizaram na região". Quantas gerações famílias têm que viver em algum lugar para se tornar nativo? O que é um migrante enraizado? Quem define o que é um paraense? Isto depende do lugar de nascimento, da origem de sua família, do tempo de permanência, de auto-identificação? Quem gosta de tacaca, toma açaí, torce por Paysandu ou Remo, se cura com caribé, come xibé, canta o hino da bandeira do Pará, votou em Jader Barbalho? Neste ultimo caso, uma pessoa que nasceu 40 anos atrás em Santarém e migrou com sua família há 35 anos para São Paulo é mais paraense ou da região de Tapajós do que um morador de Marabá que nasceu em Imperatriz e que já mora, trabalha e já vive dez anos no Pará?
Segundo o artigo a identidade paraense seria mais evidente na região de Tapajós do que do Carajás. Imagino que isto se baseia em dados, como, por exemplo, do IBGE (gostaria de conhecer esta base de dados das afirmações feitas no artigo). Indago se os grandes fluxos de colonos, garimpeiros, funcionários de mineração, agricultores etc. que nas últimas décadas foram à região de Tapajós já são considerados por você "enraizados"? A ocupação da região de Carajás nas últimas décadas, com a abertura da Transamazônica, o garimpo Serra Pelada, o projeto Carajás etc. não mostram uma tendência parecida?
Argumentou-se que os maranhenses teriam a intenção histórica de se apossar dos recursos naturais do Pará. Espanto-me com esta simplificação e assalto à verdade. Primeiramente não se pode confundir as elites do Maranhão, suas intenções e políticas com o povo maranhense e a maioria dos migrantes oriundos daquele estado. Em segundo lugar, as riquezas do Pará na sua grande maioria não são apossados por maranhenses, mas por sulistas, estrangeiros e elites do próprio Pará. A pobreza e desigualdades no Estado têm outras raízes e razões, tantas vezes apontadas no próprio Jornal Pessoal.
Migrante é um termo genérico, que indica uma pessoa que muda de lugar de residência, mesmo que isto não seja permanente. Há milhares de fatores que influenciam na migração e nas motivações para migrar e suas conseqüências também são múltiplas, inclusive de vincular lugares de origem com lugares de destino. As conseqüências se traduzem em dinâmicas novas nos lugares de origem e de destino, positivas e negativas, dependendo também de ponto de vista. Na disputa pelo poder e pelo território, o migrante se torna “o outro”, sem direitos de cidadania, somente tolerado quando contribui e não se manifesta.
Quem define quem tem direito de morar em certo lugar? Em geral o grande capital e a classe média não encontram limitações para se deslocar dentro e fora do país (na região de Tapajós e de Carajás as grandes empresas de mineração, agroindústrias etc. são dominadas por pessoas que nem moram na região); as classes trabalhadoras têm menos liberdade e “legitimidade”.
São geralmente estes migrantes que são discriminados, criminalizados e rotulados como culpados de problemas sociais. Porém, são eles que migram para trabalhar, para construir um futuro melhor, sendo mão de obra de muitas construções e mudanças. Entre eles há pessoas que vão contribuir e outros que só querem se aproveitar, como há na população considerada nativa ou entre as pessoas que migram sob a proteção de seus poderes econômicos e políticos.
Um migrante deveria ter ou não deveria ter direitos políticos para poder participar nas decisões no lugar onde vive, trabalha e mora? Ele deve ser visto somente como mão de obra "calada" ou pessoas indesejadas (por quem?)? Um brasileiro que nasceu, por exemplo, no Maranhão não tem o direito de se mudar para outro lugar no seu próprio país, ser cidadão em outros estados do mesmo país, de transitar e participar, somente por que não nasceu do outro lado de uma fronteira política administrativa?
Lamento muito que o argumento de origem de moradores se tornou um argumento na discussão sobre a divisão do Estado do Pará, um Estado composto por milhões de migrantes ou filhos de migrantes. Provocar a xenofobia (o outro é um mal e deve ser excluído) me parece um caminho infeliz e condenável. Há muitos outros debates importantes para aprofundar a discussão sobre a divisão do Pará.
Marcel Hazeu
MINHA RESPOSTA
Lamento que o Marcel tenha feito uma leitura torta do artigo a que se refere e de tudo que leu neste jornal em 16 anos de acompanhamento. O que me atribui é o inverso do que sempre escrevi. Nem podia ser de outra maneira. Minhas origens se atam a duas das maiores correntes migratórias da Amazônia: a dos cearenses e a dos portugueses. Possui também assentamento indígena e africano. Nunca escondi essa ancestralidade. Pelo contrário: não só a encaro com gratidão como venho dedicando parcela considerável do meu empenho em restaurar sua história contra um pano de fundo de estereótipos e preconceitos.
Também tenho um carinho e uma atenção especiais pelos maranhenses. Adoro São Luís, sua gente e sua cultura. Percorri parte do interior maranhense. Fiz, com minha família inteira, uma viagem marcante, da capital maranhense a Parauapebas, pelo trem de Carajás, vetor do principal fluxo migratório (e “expulsatório”, se me permitem abusar do neologismo). Contribuí como repórter para que São Pedro da Água Branca, na divisa contestada com o Pará, no Gurupi, sobrevivesse, na metade dos anos 1970.
Dei minha contribuição para combater a praga da grilagem de terras que assola o Maranhão. Fiz várias palestras ao público maranhense. E, sobretudo, neste jornal, tenho defendido a busca de nossas identidades comuns, numa irmandade livre de mentiras e manipulações. Já escrevi vários artigos sobre maranhenses ilustres, como o poeta, compositor e cantor João do Vale. Meu amor pelo Maranhão se estendeu a Marabá, onde o cantar gonçalvino no falar é música aos meus ouvidos. Os marabaenses que já me ouviram e leram sabem que o terceiro lugar no meu coração, depois de Santarém e Belém, está lá plantado.
Biografias à parte, o artigo não autoriza a interpretação de Marcel, no texto em si e combinado com o imediatamente anterior. Não me lanço contra os migrantes, mas contra o modelo de ocupação da Amazônia que fomenta esse tipo de migração. Não apenas – nem principalmente – do homem, mas de uma cultura estranha à região, que leva à destruição do seu elemento natural mais nobre, a floresta, de uma nobreza de par com a água, cujo ciclo, se desfeito, e da forma brutal como vem sendo feito nos últimos 40 anos, desnatura e inviabiliza a região.
Tanto o João da Silva com sua cultura de subsistência rotativa quanto a Volkswagen, com sua tecnologia de ponta e seu potente capital, primeiro derrubam árvores e depois se perguntam sobre o que farão. O que fizerem terá menos valor intrínseco e será menos amazônico do que o mundo que havia à sua chegada. Enquanto a S/A quer commodities em escala comercial mundial, o cidadão com sua família quer sobreviver da maneira que sabe – e que não é uma maneira amazônica.
O que eu disse é que, com a criação do Estado de Carajás, esse modelo terá sua ferocidade incrementada porque o universo da sua abrangência será menor e sua capacidade de intervenção, maior. O mesmo acontecerá no Tapajós, onde os “grandes projetos” já têm raízes ou as estão desenvolvendo agora. Só que a viabilidade da emancipação do oeste do Estado é maior do que a sul/sudeste em função da longa história dessa aspiração e pela maior identidade e permeabilidade entre suas capitais, Belém e Santarém. Quanto a Carajás, nem é preciso ressaltar que os defensores do novo Estado apontam o predomínio dos migrantes como uma das causas fundamentais para sua separação do Pará, o que, evidentemente, não é bem recebido em Belém.
Sugiro ao leitor que reveja sua coleção de 16 anos deste jornal para ler o que escrevi a respeito, com ênfase nos artigos mais recentes sobre a divisão, para podermos dar continuidade ao nosso proveitoso e fecundo diálogo, debate ou mesmo confronto.