segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O desenvolvimento e a fumaça

Lúcio Flávio Pinto

Talvez Marina Silva tivesse mais votos se disputasse a presidência de um país europeu do que a do Brasil. O solo do Velho Mundo se mostra mais receptivo do que o do Novo Continente ao seu discurso ecológico. Num país de extensão continental e crente que tem território suficiente para manter indefinidamente a expansão da sua fronteira econômica, falar em proteção da natureza e manter a floresta em pé parece devaneio, quando não loucura. Não rende votos porque não toca na parte mais sensível do corpo humano, que, segundo o maior dos economistas, lorde Keynes, é o bolso.
Compra-se como nunca, consome-se desenfreadamente, há dinheiro se espalhando pela sociedade e difunde-se a certeza de que desta vez o Brasil chegou ao topo da economia mundial – e não vai mais ser despejado de lá, como em outros momentos do sonho do país grande.
As garagens e as ruas se enchem de carros, edifícios são levantados aos milhares, as vitrines e as prateleiras das lojas têm maior diversidade de produtos em exibição e a rede de serviços se amplia, diversifica-se e se sofistica. Se está dando certo, por que mudar o ritmo e a direção das atividades produtivas?
Claro que alguns “detalhes” importantes são sonegados ao grande público, que já parece ter decidido eleger “a candidata do Lula”, sem mesmo se importar em saber quem ela seja.  Depois de Collor, responsável pela primeira das três derrotas sucessivas de Lula, é o maior salto no escuro que o eleitor já deu, maior do que aquele pulo traumático que elegeu Jânio Quadros, exatamente meio século atrás. Como se sabe, o salto não terminou até hoje. Viramos órfãos de Jânio. E de Collor. De Dilma também?
Um desses “detalhes” ignorados pela massa: o elevado grau de endividamento geral, em contraste com a baixa taxa de poupança do cidadão brasileiro. A nação pensa no imediato (a longo prazo, todos estaremos mortos, palpitou também o inglês afetado John Keynes). O crédito está fácil e abundante (embora à maior taxa de juros do mundo) e o cartão plástico é mágico. Daí um terço do PIB, que representa a soma da riqueza nacional, ser formado por crédito. É dinheiro que sai e vai precisar voltar um dia. Em proporção nunca antes vista (mas este nunca não se ouvirá da boca de Lula, contumaz usuário do valor absoluto).
O prazo de cinco anos para comprar o automóvel ou 20 para quitar o apartamento pode terminar e a dívida, não. O descompasso pode vir muito antes. O índice de inadimplência já acendeu o alerta amarelo. Mas isso é “detalhe”. Melhor esquecê-lo e votar na mãe do PAC, o programa de aceleração do crescimento. Prosseguindo na diretriz do padrinho Lula, ela vai manter a circulação de riqueza, o emprego, a grana no bolso e os olhos vidrados pelo consumo sem freio.
Por incrível que possa parecer aos dogmáticos e intransigentes, o clima é o mesmo de quatro décadas atrás, entre o final dos anos 1960 e o início dos 1970, quando o “milagre brasileiro” era medido pelo crescimento de dois dígitos do PIB. A matriz dessa máquina também era o endividamento, que o governo foi buscar no exterior. Seu combustível, o silêncio e a “paz social” imposta por um feroz aparelho de repressão policial, azeitado pelo regime militar.
Eleito e ainda não empossado, Lula admitiu de público que admirava os tecnocratas. Protegidos pela espada dos generais, eles conceberam um planejamento do desenvolvimento muito parecido ao do PAC. Com a diferença de que os atuais projetos de impacto não resultaram em taxas de incremento do PIB tão altas (abaixo da metade até agora) e Lula não tem as ferramentas (nem as armas) dos generais. Embora tenha como consultor o mais poderoso dos tecnocratas dessa época, o economista Antônio Delfim Netto.
Delfim deve se sentir tão à vontade agora quanto na época em que dava ordens diretas, como czar personificado e não conselheiro, ou eminência parda. De qualquer maneira, como na matemática, a ordem dos fatores não altera o produto. Da mesma maneira que os militares, carentes da matéria nas suas escolas de formação, também Lula nada entende de economia. Delega a tarefa de cuidar das finanças a tecnocratas semelhantes aos dos generais. Como o tucano-peemedebista sem plumas Henrique Meirelles, presidente do Banco Central.
Em tal contexto, o discurso ambientalista de Marina Silva soa tão frágil e franzino quanto sua aparência física. Seu índice de preferência nas pesquisas não se alterou e parece ter-se cristalizado. No mês passado, quando começou a propaganda eleitoral gratuita (ma non troppo) pela televisão, o Brasil ardia em fogo e era coberto pela fumaça de um dos símbolos e sustentáculos do crescimento que o PAC apoia: o agronegócio.
O satélite registrou mais de 26 mil focos de fogo no país, 270% a mais do que no mesmo mês de 2009. O que aconteceu de diferente no período para provocar situação com a dramaticidade que a própria televisão exibiu?
Em agosto de 2009 não havia campanha eleitoral. Ela agora está ativa e mobiliza recursos para a definição dos rumos políticos. A tentativa de brecar duas anomalias civilizatórias ainda de prática corrente no Brasil do século XXI – a derrubada da densa floresta nativa tropical para substituí-la por um recurso natural de valor inferior e uma atividade econômica de curta duração, e o uso do fogo, a mais primitiva das tecnologias humanas, para expandir ou sustentar essa mesma atividade – esbarrou mais uma vez em uma iniciativa nascida da “base aliada”.
Um partido comunista por assim dizer clássico, o PC do B, que apoia um partido neoesquerdista, o PT, sabotou o texto do novo Código Florestal. De tal maneira que os agentes dos desmatamentos e das queimadas se sentiram livres, leves e soltos para ignorar as normas ecológicas sugeridas e prosseguir na sua faina destruidora. A insensatez teve seus efeitos ampliados por uma temporada de seca mais rigorosa do que o normal.
Para estupor dos observadores mais atentos, ou mais sensíveis, o aeroporto de Porto Velho, a capital de Rondônia, ficou fechado durante três dias. A cidade estava coberta por enorme e densa fumaça, soprada pelo vento do Atlântico para a cordilheira dos Andes, paredão que fez refluir esse smog doentio sobre o extremo oeste da Amazônia.
Fato absolutamente inédito: durante quatro dias, o aeroporto de Manaus também esteve no abre-e-fecha por causa da mesma leva de fumaça, apesar de estar a 900 quilômetros da capital rondoniense. Nunca os habitantes da Zona Franca se viram em situação igual: ter que conviver com a densa névoa, que tornou o ar pesado e atacou gargantas e olhos da população.
É preciso ver e viver as mudanças que têm ocorrido na Amazônia para senti-las e poder discerni-las como realidade por trás de papéis e números frios, ou de discursos falsos. Entre 2007 e 2009, segundo o IBGE, Rondônia foi o terceiro Estado que mais reduziu o desmatamento – em 84% – no Brasil. Mas essa façanha não serve de consolo. A derrubada de floresta no Estado é tal que ele não quer mais pertencer à Amazônia. Reivindica sua incorporação ao Centro-Oeste para poder continuar a desmatar, além dos 50% que atingiu. Rondônia já é um Estado infrator do atual Código Florestal, velho de 45 anos, mas talvez melhor do que o seu sucedâneo desnaturado pelos intelectuais neoalbaneses do Brasil.
A segunda melhor redução do desmatamento (de 85%) aconteceu do outro lado da Amazônia, em Roraima. Pois foi justamente lá que, entre 1987 e 1988, ardeu a tese de que a floresta úmida amazônica é insuscetível à combustão natural e refratária ao fogo humano. Foi o incêndio mais prolongado, em tempo e espaço, de toda a história da região. O primeiro caso de queima da floresta nativa em função da alteração da paisagem pela ação humana em combinação com o ressecamento do clima, hoje uma preocupação nacional. Uma conjunção literalmente explosiva, mas que se expande na Amazônia, ameaçando-a cada vez mais.
O Acre, sim, combinou redução do desmatamento (de 93% entre 2007 e 2009) e esforços para dar conteúdo de realidade à sua “Florestania”, política pública para manter a floresta em pé, demonstrando que essa é a escolha certa – e também a mais rentável. Mas o Acre tem o sétimo pior índice de desenvolvimento humano (IDH) do país. Não por acaso, fazendo companhia ao Pará nesse rabo de fila, ambos tendo optado pelo extrativismo: o vegetal no Acre e o mineral no Pará. Dolorosa condição colonial.
Marina Silva é a mais conhecida das lideranças acreanas desde Chico Mendes, o líder seringueiro assassinado em 1988, um ano após o recorde de desmatamento de todos os tempos e ano da “Constituição-Cidadã”, mas já nem é favorita no seu Estado natal. Foi superada pelos seus antigos correligionários petistas. Talvez porque eles, mantendo o discurso ecológico, agem pragmaticamente, incorporando à sua ação temas que antes negavam ou combatiam. No que, aliás, não inovam: Lula está aí mesmo para não deixá-los sós.
Para Marina resta o consolo de ter, se não o melhor companheiro de chapa, um candidato a vice-presidente que lhe permitiria se apresentar ainda melhor ao eleitorado europeu, como uma típica candidata verde. Afinal, Guilherme Leal, o dono da empresa de cosméticos Natura, é um bilionário brasileiro para o qual o “desenvolvimento sustentável” não ficou na retórica. Traduziu-se em dinheiro, multiplicado por anexar às caras embalagens dos seus produtos a imagem de uma Amazônia bonita, desejada e admirada por todos. E que a cada nova campanha eleitoral vira mais fumaça.