sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Carta contesta reportagem sobre índios do Trombetas

Etnozoneamento

Como admiradora de seu trabalho e como profissional que sou me sinto na obrigação de responder, mesmo que não publicamente, as questões que você coloca na reportagem intitulada “Em nome dos índios, o mapeamento do vale do Rio Trombetas” (04/07/2010), pois sou antropóloga, funcionária pública da Secretaria de Meio Ambiente do Pará, não filiada e nem simpatizante de partido político algum e coordenadora do projeto piloto “Conservação da Biodiversidade em Terras Indígenas do Pará”, projeto que executa em convênio técnico financeiro com a Associação Kanindé a ação de “Etnozoneamento de Terras Indigenas da Calha Norte do Estado do Pará”.

A despeito do título anunciado por você como quinhentista do subprojeto houve algum equivoco de alguém - não eu- que não colocou as aspas em seu devido lugar no conteúdo do título. O título correto do subprojeto é Trabalhos de “Etnozoneamento da porção paraense das Terras Indígenas Trombetas, Mapuera, Nhamundá Mapuera e áreas ocupadas por povos indígenas na Floresta Estadual do Trombetas”. Tivemos obrigatoriamente de pontuar as áreas que iríamos trabalhar e como na Floresta Estadual do Trombetas (Flota- Trombetas) há vários indígenas de várias etnias habitando-a tínhamos que definir a área de execução do projeto ainda em seu título para não gerar confusões.

Associação Kanindé, uma organização nacional do terceiro setor, sediada em Rondônia, possui várias premiações em metodologias participativas inovadoras, inclusive a metodologia que possibilita os trabalhos de etnozoneamento de terras indígenas, realiza já há algum tempo ações junto aos povos e terras indígenas da Calha Norte. Esta Associação juntamente com a Funai, Associação dos Povos Indígenas do Mapuera (Apim) e Equipe de Conservação da Amazônia realizaram no ano passado um trabalho de etnomapeamento das Terras e áreas indígenas em questão. O Etnomapeamento é uma das premissas necessárias para realização do etnozoneamento.

A Sema realizou a celebração de um convênio de cooperação técnica entre a Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé e seus parceiros (FUNAI, APIM e ACT), depois de realizar várias consultas aos povos indígenas, vários seminários e oficinas de trabalho em Belém, mas especificamento no auditório do Museu Paraense Emílio Goeldi (foram todas divulgadas) com atores organizacionais diversos (governamentais e não governamentais), onde existiu a formação de plenária pública e aberta a todos para definir as parcerias que iríamos realizar para execução do subprojeto. Ainda existiu a contrapartida dada por esta associação e seus parceiros de montantes de recursos no total de R$ 359 mil reais, ainda com a vantagem de que os dados do trabalho de etnomapeamento (trabalho custoso) seriam cedidos para viabilizar o etnozoneamento, ou seja, a parceria montada não haverá de gastar mais tempo e recursos nos trabalhos de Etnomapeamento.

A Sema desta forma repassou um montante de 500 mil reais, como contraparte para realização do subprojeto e se aliou a estas organizações por saber de seus idoneidades e suas capacidades profissionais, pois já executaram com sucesso e premiação o mesmo trabalho em várias terras indígenas do país. A equipe técnica subcontratada e que executará os trabalhos vai ser recrutada no nosso Estado mesmo e contará com apoio da pequena equipe técnica do projeto Conbio-indigena .

As equipe técnicas da Sema, formadas por funcionários do quadro fixo deste órgão de governo, acompanharão o trabalho e serão capacitadas na metodologia para tentarem replicá-la brevemente em outras Terras indígenas do Pará. Conforme plano de trabalho apresentado pela Associação Kanindé e seus parceiros e discutido com a Sema, o cronograma de realização do subprojeto é de um ano a contar da data de assinatura do convênio, com a possibilidade de pedido de prorrogação da data dos produtos deste trabalho, no entanto sem a possibilidade de repasses de mais recursos para finalizar os trabalhos.

Os repasses dos recursos vão ser realizados em parcelas e vão estar condicionados a apresentação e aprovação dos produtos do etnozoneamento e prestação de contas. Depois da execução do projeto de etnozoneamento estaremos implantando projetos de manejo de recursos naturais das aldeias indígenas, a partir das indicações dos estudos do diagnóstico etnoambiental que é uma das etapas metodológicas do etnozoneamento.

Infelizmente no Pará não temos a tradição de executar trabalhos desta natureza junto aos povos indígenas do Estado. Nem mesmo o curso de antropologia da universidade não forma profissionais para atuarem aplicadamente junto a povos indígenas e pelo que podemos observar nas diversas oficinas, seminários que organizamos antes de chegar a celebração de um convênio com um organização do terceiros setor de outro estado, não há organização nativa que trabalhe com metodologias aplicadas e participativas aqui no Pará.

A área total do subprojeto a ser trabalhada é 5.020.418 hectares de terras indígenas que já estão regulamentadas e parte das áreas indígenas da Flota Trombetas que compreende 3.172.978 de hectares, no final são mais de 4 milhões talvez sejam mesmo seis milhões, no final do trabalho saberemos ao certo. Não sabemos ao certo quantos hectares da Flota Trombetas são habitados pelos índios Kaxuyana e Tunayanas, no entanto o trabalho de etnozoneamento vai auxiliar na mensuração das áreas indígenas que hoje estão sobrepostas a Flota. Eu informo também que o processo de demarcação das Terras Indígena dos Kaxuyanas já está em finalização, no entanto o trabalho de etnomapemaneto e etnozoneamento podem auxília-los neste processo, bem como auxiliar na resolução dos conflitos que normalmente ocorrem na região entre indígenas e quilombolas.

Para finalizar minha comunicação é que felizmente os órgãos públicos de governo vêm sendo ocupados por pessoas que não tem interesse político partidário como meta para execução de seus trabalhos e que por alguma razão ainda acreditam que podem fazer alguma coisa para modificar os quadros da realidade, apesar de todas as adversidades. Tentaremos através de um comitê de acompanhamento de monitoramente constante deste projeto, fazer com que ele realmente beneficie os povos indígenas nos seus processos de desenvolvimento.

Também temos sérios problemas com o setor de comunicação dos órgãos de governo que veiculam noticias que não são condizentes com os trabalhos que executamos. Alias são raros os casos de jornalista que dominam algum tipo de temática para repassar as noticias para a população em geral e fatos como este de informações mal repassadas sempre deixam- nos vulneráveis a críticas.

Claudia Kahwage Coordenação Técnica Projeto CONBIO- indígena – Secretaria de Estado de Meio Ambiente

O desafio da globalização para o açaí dos paraenses

Lúcio Flávio Pinto:

Antigo versinho, de largo uso local, revela um dos principais atrativos do Estado: “Quem vem ao Pará, parou; tomou açaí, ficou”. Mas não eram muitas as pessoas que vinham ao Pará. E nem todas elas apreciavam o açaí, que continuou a ser um patrimônio exclusivo dos paraenses e, em menor grau, de outros Estados da Amazônia.

Em 2000 a situação começou a mudar, rápida e intensivamente. Disparado o maior produtor nacional, o Pará extraiu naquele ano 380 toneladas, quase exclusivamente para o consumo interno. No ano passado, a produção alcançou quase 10 mil toneladas – e se tornou insuficiente para suportar a demanda. Boa parte dela foi para outros Estados e alguns países.

Na onda da alimentação natural, da busca pela juventude prolongada e pela saúde total, o açaí entrou de vez na dieta de naturalistas, macrobióticos, atletas e integrantes da terceira idade. É oferecido em quase todos os Estados brasileiros e foi aceito pelos Estados Unidos e a Austrália, que importam quantidades crescentes de açaí. É a fruta nativa de maior presença fora da Amazônia, um raro caso de sucesso de um produto tipicamente local. Sua cultura deverá continuar a se expandir exponencialmente pelos próximos anos. É uma oportunidade rara – embora delicada e cheia de desafios – para a economia estadual e mesmo regional.

Embora os paraenses apostassem nos encantos do suco extraído da vistosa palmeira, jamais podiam supor que ela conquistaria milhões de admiradores espalhados além das suas divisas, de uma forma que horroriza o consumidor tradicional. O belenense padrão toma, praticamente todos os dias, um prato do “vinho” de açaí puro e grosso.

Extraídos da copa da palmeira, que pode chegar a 30 metros de altura, por uma pessoa hábil em subir pelo tronco fino e liso, os frutos são colocados numa máquina (inventada em Belém mesmo) que faz descaroçamento e amassa a polpa em água, deixando passar um líquido com um tom tão carregado de roxo que chega a parecer negro luzidio.

A denominação popular de vinho, dada a essa calda encorpada, se revelou sábia à medida que as pesquisas sobre o açaí se aprofundavam. Quem o experimenta tem dificuldade de definir o paladar. No passado, sem informações sobre o valor nutritivo e medicinal do fruto, quem experimentava costumava reagir com desagrado porque o gosto era terroso, de palha.

Um novo teste, porém, abriu uma nova porta à percepção. Um pesquisador não iniciado no ritual do açaí disse que seu paladar é uma mistura de chocolate e de vinho tinto. Mais informado tecnicamente, seu juízo deve ter sido influenciado pelas qualidades químicas do produto, que o tornaram um sucesso de público nos mais diferentes auditórios.

O poder antioxidante do açaí é 33 vezes maior do que o da uva na eliminação do colesterol e dos radicais livres, superando nessa medida os atributos do vinho. É ainda cinco vezes maior do que a do Gingko Biloba, produto fitoterapêutico utilizado no mundo inteiro.

Seu suco tem um valor energético duas vezes superior ao do leite. Tem grande quantidade de ferro e de fibras, que favorece o trânsito intestinal. Com significativo teor de proteínas, cálcio e potássio, é considerado uma das mais nutritivas frutas da Amazônia, perdendo apenas para a castanha-do-pará.

Todas essas qualidades ampliaram o leque de usos dados ao açaí quando ele transpôs os limites do Pará, onde apenas o vinho era tomado, com acompanhamento de farinha, açúcar, uma ou outra fruta, peixe, camarão e carne seca. Hoje, o açaí se apresenta com xarope de guaraná, mamão, morango, maracujá, cereais, suco de laranja, leite. As combinações e variações avançam ao sabor da imaginação de quem espera potencializar ainda mais os benefícios do fruto.

Uma consequência dessa voragem é reduzir a participação do próprio açaí na mistura, o que já acontece com essências amazônicas utilizadas na cosmética ou mesmo na fitoterapia, em proporção muito pequena (embora a embalagem declare o contrário). Enquanto o custo for relativamente alto e a validade do produto reduzida, a diluição do açaí puro será uma contingência comercial. Só assim renderá maiores lucros.

Com o desvio de parcelas cada vez maiores da produção para fora da Amazônia, em virtude dos preços mais elevados que são oferecidos e dos mecanismos de comercialização, que chegam diretamente ao produtor, vai se tornando cada vez mais remota a possibilidade de fazer com o açaí o que os franceses fizeram com o seu vinho: classificar um terroir (leia-se terroá) do açaí.

Qualquer dicionário francês define o terroir como “produto próprio de uma área limitada”. O terroir é um conjunto de terras sob a ação de uma coletividade social congregada por relações familiares e culturais e por tradições de defesa comum e de solidariedade da exploração de seus produtos, acrescentam os tratados.

Há um terroir específico para a valorizadíssima champanhe francesa na região da Champagne. Quem compra uma garrafa dessa bebida paga um valor maior quando sua origem é atestada.

Conforme argumentou um especialista, " >o terroir, na verdade, é revelado, no vinho, pelo homem, pelo saber-fazer local. “O terroir através dos vinhos se opõe a tudo o que é uniformização, padronização, estandardização e é convergente ao natural, ao que tem origem, ao que é original, ao típico, ao que tem caráter distintivo e ao que é característico com todos os requisitos para serem reconhecidos como denominações de origem, pois agregam origem, diferenciação e originalidade dos produtos”, diz Jorge Tonietto, da Embrapa.

O terroir do açaí é na chamada “região das ilhas”, na foz do rio Amazonas, no Pará, em torno da parte ocidental da ilha de Marajó e do baixo Tocantins. Não há fruto melhor em condições naturais do que esse. Nem bebida de sabor mais puro do que aquela que é vendida em centenas de pontos espalhados por todos os bairros de Belém, com seus 1,4 milhão de habitantes.

Nas melhores quitandas (que anunciam o produto com uma bandeira vermelha à porta), o batedor é um expert não só em produzir o líquido encorpado como um vinho tinto e denso como um chocolate, mas também em escolher o melhor fruto para esse processo. Os seus clientes habituais, que compram e tomam açaí todos os dias (beneficiados pelo florescimento da palmeira o ano todo, em melhores condições de julho a dezembro), exercem o controle de qualidade e dão sugestões.

Se esse ciclo for rompido ou desaparecer, como ameaça acontecer, será difícil estabelecer um terroir para o açaí, agregando-lhe os benefícios que ele teria da classificação, como a champanhe francesa. Mas não só para ganhos maiores na exportação: também para não tirar dos velhos apreciadores do melhor açaí o direito de usufruírem esse prazer multissecular. O governo teria que criar uma política de sustentação de preços e de produção para que um segmento não prejudique o outro e a atividade econômica não liquide com o processo cultural.

Da mesma maneira como a produção e a comercialização cresceram aceleradamente, o preço para o comprador de açaí em Belém e outras cidades amazônicas se multiplicou por cinco. Nos períodos de menor produção (e de qualidade inferior), um litro de açaí tem o preço de uma sobremesa cara de restaurante, como um brownie.

Para muita gente açaí é mesmo sobremesa. Mas para uma parcela expressiva ele é alimento, às vezes a única refeição forte do dia. Apesar do aumento exorbitante dos preços, quem tem o hábito de tomar açaí encontrou uma forma de não ficar sem ele. Na melhor das hipóteses, porém, o peso desse costume está se tornando oneroso, prejudicando o orçamento doméstico.

Até a explosão do açaí no mercado de academias de saúde e entre atletas, toda produção vinha de áreas naturais, nas várzeas inundáveis das margens dos cursos d’água. Hoje, 20% provêm de plantios manejados em terra-firme, que não oferece solo em condições para uma cultura de melhor qualidade.

Mas para que produzir o açaí puro e grosso, se seu gosto vai ser diluído ou desaparecer pela presença de acompanhantes valorizados pelos consumidores atraídos pelo poder energético e vitamínico do fruto – e que, ademais, nunca tiveram contato com o paladar original? O açaí, mesmo sendo o item mais importante, é um elemento do mix e não o componente único, conforme é para o gourmand do produto em Belém.

Essa tendência se consolidou quando, em 2007, nove fabricantes, que produzem para exportação, assumiram com o Ministério Público o compromisso de pasteurizar o seu produto. Neste ano, o senador acreano, Tião Maia, chegou a apresentar um projeto de lei tornando obrigatória para todos a pasteurização. A medida não só modifica drasticamente o gosto, tornando-o intragável para o connaisseur, como colocaria no desemprego milhares de vendedores individuais, que atuam no varejo, em pequenos estabelecimentos comerciais. Felizmente a iniciativa foi abortada a tempo. Bastou mostrar ao senador o efeito nocivo da sua proposta, que ele, mesmo sendo da Amazônia, desconhecia.

Antes, houve uma onda sensacionalista em torno da ameaça de surto de doença de Chagas porque o protozoário está presente no fruto e é esmagado quando ele é descaroçado. Tanto tempo depois que o açaí faz parte da mesa do paraense, foi a primeira vez que o problema se tornou alarmante. Mas nada sugere que a ameaça da doença sobreviva a cuidados de higiene e normas de qualidade, providências que os próprios vendedores passaram a adotar.

O mesmo não se pode dizer do futuro do açaí como um terroir paraense. Pode vir a se tornar um produto paulista, baiano ou texano, conforme a forma de apropriação que vem sendo feita, que inclui a patente. Tem sido esse o destino dos produtos naturais amazônicos, nos últimos anos, em especial, os minérios. A Amazônia tem lugar no enredo atual para ser colônia do mundo, não agente da sua própria história.