quarta-feira, 30 de abril de 2008

E nós vamos com qual das caras?

Bellini Tavares de Lima Neto

Em que momento ou em que circunstâncias exatamente as pessoas se revelam? É comum se ouvir dizer que é nos momentos de grandes desafios que aparece a força do caráter. Alguém até criou uma historia que virou enorme sucesso de cinema e que traduz exatamente essa impressão. Estou me referindo à história do Hulk, aquele sujeito comum que, diante de uma grande ameaça ou de um perigo descomunal se transforma naquele monstrengo esverdeado e feio, mas que ganha uma força sobre-humana.
A fantasia do homem esverdeado fascina as pessoas e goza de uma aceitação bastante significativa. Quase todo mundo conhece uma história parecida ou até já viveu situações semelhantes. É claro que, para esverdear, só com uma crise hepática das bravas, adquirida, provavelmente, depois de intermináveis sessões etílicas também conhecidas como porre. É diante do perigo que se conhece o homem. Nos momentos de grande tensão e desafio surge aquela força que nos impulsiona e nos faz agir. É. Parece que é assim, mesmo.
No entanto, também não é menos verdade que a verdadeira face de um sujeito ou de uma sociedade pode vir à tona meio sem querer, por descuido ou desatenção. Ou então, vem à superfície porque compõe a personalidade desse sujeito ou dessa sociedade e, então, não há como evitar que, mais dia, menos, caia a máscara e apareçam as imperfeições, as cicatrizes.
Isto já pode estar começando a parecer lição de moral ou receita de auto-ajuda, mas, na verdade, é bem mais preocupante que isso. A revista VEJA da semana de 23 de abril de 2008 (Edição 2057 - ano 41 - no. 16) publicou uma matéria assinada pelo jornalista Marcelo Martho falando sobre uma das novelas da Globo. Mais exatamente, a que vai ao ar no horário mais nobre: a novela das 8 ou das 9, não sei bem ao certo. O jornalista comenta a decisão do autor da história, Aguinaldo Silva, de mudar o final para amenizar o destino do maior vilão do folhetim, o odioso Marconi Ferraço. O sujeito vai muito além do mau-caratismo que já se consagrou como instituição nacional. É quase uma peça surrealista, uma caricatura da vilania humana. Arma arapucas atrás de arapucas, prejudicou metade da população da história, trata mal a todo mundo, é, enfim, aquele tipo de sujeito que entra completamente anônimo num bar qualquer e, no ato, do nada, meia dúzia de sujeitos se levantam com vontade de lhe dar na cara. E, porque o festejado noveleiro global vai aliviar o destino da lacraia? Porque, segundo o jornalista, mais de um milhão de votos vindos do público pediram isso a ele.
Hora da verdade: e daí? Que importância pode ter o final da novela e, sobretudo, o que tem a ver o final da novela com a história da revelação do caráter de um sujeito ou de uma porção de sujeitos que compõem uma sociedade? Bem, se eu estava querendo criar um climazinho de suspense, acho que acabei de estragar tudo. Fica mais do que evidente que, no mínimo, é preocupante ver um milhão de pessoas pedindo ao autor da história que anistie o facínora simplesmente porque ele tem lançado uns olhares mais adocicados para a infeliz da primeira mulher e para o filho que até recentemente ele sequer conhecia e quando conheceu, considerava um estorvo. Mau-caratismo, falta de escrúpulo, canalhice, patifaria, nada disso em importância, nada disso pesa muito ou quase nada.
Novela é coisa trivial, supérflua, sem relevância, está longe de corresponder a idéia de um grande momento de tensão, de um grande desafio, tudo aquilo que faz aparecer o caráter de alguém. Pois é exatamente nessa hora que, talvez por descuido ou descontração, a gente vê um milhão de pessoas dizendo que a falta de caráter, de padrão ético, de moral, a natureza cafajeste do Marconi Ferraço não tem importância alguma. Um milhão de pessoas estão dizendo, com aquele jeitinho meio inconseqüente, que esse comportamento imoral, indecente, marginal é perfeitamente perdoável diante de um afago ou de um gesto de bom-mocismo.
Será que eu preciso trocar os meus óculos urgentemente ou faz algum sentido ver, nessa atitude, certa semelhança com a condescendência nacional com a história do “rouba, mas faz” ou com a ignorância assumida, incorporada e declarada a respeito de escândalos nacionais? É miopia ou a sociedade brasileira perdoa o Marconi Ferraço tanto quanto perdoa e afaga os mensaleiros, os sanguessugas, os aloprados, os dossiês travestidos de banco de dados?
Pois é. É só tirar os refletores de cima dos sujeitos e eles se descuidam, tropeçam e, pronto: lá vem à superfície a cara deles com todos os tons de realidade. O que assusta um pouco é que eles são um milhão de votos só na novela das 8. E se juntar todas as novelas, quem é que essa turma vai acabar elegendo?
24 de abril de 2008 .

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