quinta-feira, 29 de maio de 2008

Papéis da História - Lúcio Flávio Pinto

Jornalistas: o alvo

Os ares nunca foram muito bons para jornalistas críticos (ou independentes) no Pará, antes, agora e – ao que parece – sempre. Em 1928, duas charges da grande imprensa do Rio de Janeiro (então a capital federal) apregoavam essa má fama. Numa delas, do Jornal do Brasil, um cidadão elegante pergunta a outro, alquebrado, se ele foi “vítima de uma trombada de auto”. Resposta do acidentado: “Não, senhor, sou jornalista no Pará”. Na outra charge, publicada em O Globo, outro cidadão aprecia o muque de um musculoso personagem, mas logo observa que, se fosse jornalista no Pará, o “Bentescovavam”. O neologismo era referência explícita: ao então governador Dionísio Bentes de Carvalho.
Depredação de instalações físicas e agressão aos integrantes das redações sempre acompanharam a trajetória da imprensa paraense, quando ela divergiu do poder estabelecido. Ele se tornava ainda mais violento quando combinava o domínio político com o econômico. Os registros a esse respeito são numerosos, mas em 1950 eles atingiram o paroxismo por conta de uma das mais violentas eleições já disputadas no Estado. O poder estabelecido em torno de Magalhães Barata pretendia se manter de qualquer maneira e a oposição queria se ver livre de um domínio hegemônico iniciado em 1930, que até então resistira aos golpes eventuais dos adversários – e dos correligionários que mudavam de lugar, conforme a regra da traição de oportunidade.
A perseguição aos jornalistas começou em 11 de abril daquele ano, com o banho de fezes que os “baratistas” deram em Paulo Maranhão, o dono e principal jornalista da Folha do Norte, a mais feroz cidadela “anti-baratista”. Esse episódio é mais conhecido, já foi relembrado neste jornal algumas vezes e se tornou incontroverso: não há mais dúvida sobre a autoria do vil atentado contra o velho Maranhão, comandado por Armando Corrêa, então secretário-geral do Estado no governo de Moura Carvalho.
Já o outro episódio, de 20 de maio, continua polêmico. Humberto Vasconcelos, capitão do Exército, que estava lotado no Departamento Estadual de Segurança Pública, depois de atuar na assessoria do general Zacharias de Assumpção (que venceria a eleição para o governo, derrotando Barata), quando ele era comandante da 8ª Região Militar, matou o jornalista Paulo Eleutério Filho na sede de O Liberal.
Vasconcelos decidiu cobrar satisfações do autor de matéria da edição do dia anterior do jornal, que levantava dúvidas sobre a sua masculinidade. O oficial atribuía a ofensa ao deputado João Camargo, gerente do jornal, que era órgão oficial do PSD, o partido “baratista”, com quem conversara na véspera, no plenário da Assembléia Legislativa.
Camargo realmente fizera observações sobre o modo de vestir do militar, que imaginara um relaxado, mas que se parecia a um dândi. Aparentemente, não questionara a virilidade do militar. A insinuação maldosa surgiria no artigo publicado no dia seguinte, sem assinatura, mas de autoria de João Malato, um dos mais agressivos articulistas da imprensa paraense, que era então redator-chefe de O Liberal.
A versão mais corrente, criada pelos “baratistas”, era de que o militar invadira a redação do jornal, no início da manhã, depois de passar algum tempo observando o prédio do outro lado, na Central de Polícia (hoje, Seccional do Comércio). Não encontrando Camargo, que saíra um pouco antes, investira sobre Paulo Eleutério, que escrevia um artigo, matando-o, depois de terem trocado tiros. Por trás do ato de defesa da honra, havia uma questão política: usando o pseudônimo de “Cabano”, o capitão escrevia artigos duros na Folha do Norte, inclusive contra os “baratistas”.
Carlos Rocque, na biografia que escreveu sobre Magalhães Barata, publicada em dois volumes pela Secretaria de Cultura, reproduziu pelo menos três versões para o fato. A de João Camargo reconhece que Vasconcelos matou em legítima defesa, reagindo ao ataque de Eleutério, que acumulava o trabalho no jornal com a chefia do gabinete do governador. Foi por assim entender que o Tribunal de Justiça do Estado o absolveu por unanimidade, anos depois, quando ele já era major e exercia o primeiro e único mandato de deputado estadual.
Já Laércio Barbalho, pai do deputado federal Jader Barbalho, diz que Eleutério reagiu às palavras ásperas que ouviu do militar puxando seu revólver (era comum as pessoas andarem armadas nessa época) e trocando tiros com ele na redação. Ao ficar sem balas, o jornalista tentou fugir, mas foi surpreendido pelo capitão e morto. Rocque também reproduz, na íntegra, carta do professor Paulo Eleutério Sênior, que ataca ferozmente o militar (aproveitando-se até da mutilação que sofreu, com a perda de um dos braços, durante uma aula de instrução que dava sobre o uso de granada) e o acusa de ter assassinado covardemente seu filho, versão endossada na manifestação oficial do PSD e a mais difundida desde então.
Mas nem Rocque nem outros historiadores deram atenção ao depoimento que, quatro anos depois do crime, foi prestado pelo acadêmico de direito Francisco Nunes Salgado e reproduzido pela Folha do Norte. Salgado, então com 24 anos na época do crime, era um dos dois repórteres que estavam na redação, localizada no segundo andar do prédio, quando o capitão chegou, procurando por João Camargo. Ao saber que o gerente trabalhava no andar térreo, o militar “voltou incontinenti pelo mesmo caminho, e ao passar pelo gabinete do dr. Paulo Eleutério Filho, que então estava em sua banca de trabalho, dirigiu-lhe as seguintes palavras: ‘estás armado”.
Salgado nada mais ouviu porque Eleutério “imediatamente alvejou o militar com diversos tiros de um revólver que tinha à cintura”. Humberto Vasconcelos “procurava defender-se das balas”, mostrando-se “bastante calmo”. Desfez-se das luvas e do quepe que usava, mas não chegou a empunhar a arma que tinha (o futuro advogado não soube precisar se era revólver ou pistola). Foi “atingido duas vezes, uma do lado direito e outra do lado esquerdo, na altura da clavícula”. Para escapar dos tiros, Humberto Vasconcelos “recuava em direção a uma cabine de rádio, localizada na redação do jornal, do lado oposto ao dos gabinetes dos redatores do jornal”, onde se escondeu, enquanto Eleutério descia as escadas na direção da gerência.
O capitão o seguiu já de revólver em punho. Salgado diz que “ouviu muitos tiros de revólver, ou armas de fogo, tanto no pavimento térreo do jornal como para os lados das ruas Santo Antônio e D. Macedo Costa”
Salgado só pôde prestar seu depoimento quatro anos depois. Disse não entender porque não foi ouvido no inquérito instaurado no quartel-general da 8ª Região Militar, embora fosse testemunha do acontecimento. Já no processo judicial ele depôs como testemunha referida “debaixo da impressão causada pelas ameaças de morte de dois capangas policiais, que exerciam pressão” sobre ele para “adulterar os fatos, daí a razão de não ter feito declarações reais de acordo com o que teve a oportunidade de observar”.
Tinha 28 anos quando finalmente depôs. Era então secretário-geral da Associação Comercial do Pará, inspetor federal concursado do ensino comercial e trabalhava na redação de A Província do Pará. Estava no 4º ano do curso de direito. Seu testemunho deve ter contribuído para a absolvição do militar, que depois sairia de Belém para nunca mais voltar, morrendo em Vitória, no Espírito Santo, onde passou a residir desde então, numa espécie de auto-exílio. A violência tem sido uma forma de expulsar personagens incômodos aos poderosos no Pará. Poucos resistem.

2 comentários:

Unknown disse...

Trata-se de uma deslavada mentira o depoimento daquele jornalista (Salgado) que, posteriormente, trabalhou no jornal "Província do Pará". Meu pai, Paulo Eleutério Filho, foi alvejado logo de início pelo tal capitão do Exército. Se ele tivesse atirado primeiramente, não haveria oportunidade para o assassino, pois meu pai era um excelente atirador, tendo sido o 2º colocado no torneio de tiro do CPOR do Pará, por ocasião da prestação de seu serviço militar.

Paulo José Cavalcanti de Albuquerque (Paulo Eleutério Neto)

Anônimo disse...

Confirmo o que escrevi há quase dois anos : se o tal capitão não houvesse atirado antes, meu pai não seria morto. Como escrevi anteriormente, meu pai era um excelente praticante de tiro ao alvo. E, se não houvesse sido atingido logo de início, com um tiro de pistola calibre 45 que raspou a sua testa, ele não teria sido morto. O seu assassino foi "impronunciado" em virtude de seu julgamento haver sido no decorrer do mandato de governador do general Zacarias de Assunção, do mesmo partido ao qual pertencia o assassino do meu pai.

Paulo Eleutério Neto.