segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Resistência de 30 anos

Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal


Estávamos no início de 1967 no Rio de Janeiro. Eu vinha de ônibus da Lapa, onde trabalhava, na redação do Correio da Manhã, para trocar de roupa em Copacabana, onde morava, e seguir, ainda de ônibus, para o alto Leblon, onde estudava, no Colégio André Maurois. Era um esticão de canseira. Num desses percursos, a vista passou rápida por livros exibidos na vitrine de uma livraria da rua Barata Ribeiro. Dei imediatamente o sinal, desci na primeira parada e voltei até a loja.
Eram, de fato, como vislumbrei do ônibus, os três volumes das Obras Escolhidas de Marx & Engels, na preciosa edição de Mauro Vinhas de Queiroz para a Editorial Vitória. Uma pechincha. Mas no caminho para o caixa e enquanto esperava o pacote, olhava para todos os lados. Talvez estivesse um espião por perto para flagrar o ato subversivo, tornado possível porque o livreiro não sabia distinguir um Marx de um livro de culinária - infelizmente, a regra nesse especial comércio.
Desandei a ler as belas edições (a tradução, porém, deixava a desejar), não sem antes recobrir aquela capa montada com retratinhos dos dois "pais do socialismo científico" com um inocente papel. Ao ler os demiurgos do comunismo, eu cometia um ato pecaminoso e ilegal, aos olhos dos donos da ordem. Em alguns momentos, quando alguém me fixava em meio à leitura em ambiente público, o coração palpitava: "terei sido descoberto?"
Era mais ou menos assim que se lia o jornal Resistência, que agora completa 30 anos. Quando seu primeiro número circulou, em 1978, o ambiente estava ainda mais carregado de bruxas e demônios. Cheio de matérias sobre temas proibidos, usando linguagem desabrida, a publicação da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos do Pará equivalia a um samizdat. Lê-lo já era correr riscos. Colaborar explicitamente com ele envolvia ainda mais riscos. E assumir sua responsabilidade era uma atitude temerária, que poucos toparam, pagando por isso um preço alto.
Três anos antes tínhamos feito o semanário Bandeira 3, também uma publicação alternativa, mas feita segundo critérios profissionais, sem qualquer vinculação política, ideológica ou comercial. O B3 durou apenas sete números, mas mostrou que não era impossível realizar um empreendimento desse tipo. O Resistência durou muito mais, até 1983, quando sua circulação se tornou eventual, episódica. Tinha o respaldo de entidades e pessoas que queriam furar o bloqueio do regime à liberdade de pensamento e de expressão. Esta era sua força específica, mas foi também sua limitação: a vinculação lhe limitava os movimentos editoriais.
Com todos os seus problemas, Resistência personificou uma atitude e um momento da história da imprensa no Pará, aglutinando pessoas e despertando vocações, até ceder à repressão oficial, enfraquecido pelas inevitáveis dissensões nas quais a esquerda se enredava (e parece se enredar sempre, inclusive por sua natureza libertária, de oposição, quando não assume o poder). Os 30 anos do jornal mereciam um registro mais atento e profundo do que o que está tendo.

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