segunda-feira, 13 de abril de 2009

A conta, por favor

Belline Tavares Lima Neto
Articulista de O Estado do Tapajós


A Guerra do Vietnam durou cerca de dezesseis anos. Começou em 1959 e só foi terminar em 1975. Apesar de ter acontecido na Ásia e envolver os povos da região, os grandes mentores de tudo foram as grandes potencias de então, os protagonistas da chamada Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética. E ela só terminou em 1975 porque desde a metade dos anos sessenta já se começava a protestar, em quase todo o mundo, contra aquela carnificina. Ficaram marcados na memória, por exemplo, os movimentos pacifistas da geração "hippie" nos Estados Unidos se opondo à eternização daquela barbaridade. E também ficaram gravados na lembrança os muitos episódios de violência e brutalidade cometidos por soldados contra a população civil local. Tornou-se emblemática a célebre e terrível imagem de uma garotinha de uns dez anos de idade correndo nua e queimada por uma daquelas bombas conhecidas como "napalm".
A guerra é sempre a invocação do que há de mais estúpido e primitivo no homem. Ela transforma um cavalheiro num assassino sem limites. Não há refinamento moral, social ou cultural que resista ao poder de destruição da guerra. O mais gentil dos mortais é capaz de praticar o mais hediondo dos gestos sem que se forme uma só ruga em seu semblante. O refinamento conquistado pela civilização ao longo de milênios parece que se dissolve aos poucos como verniz sob a ação de algum tipo de solvente. E mesmo depois que ela termina, o rescaldo leva décadas para ser neutralizado. Cidades destruídas, pessoas mutiladas física e mentalmente, começam a surgir os neuróticos e psicóticos que consomem o resto de suas vidas atormentados e atormentando. A reconstrução é penosa, dolorosa. A Guerra do Vietnam certamente não foi a mais longa delas, mas talvez tenha sido a primeira a ser transmitida ao mundo quase em tempo real. Foram dezesseis anos. Mais de uma geração nasceu ou havia nascido recentemente quando ela começou. Portanto, essas gerações deram seus primeiros passos, proferiram suas primeiras palavras, aprenderam as primeiras lições, viveram sua infância, adolescência e chegaram quase à idade adulta sob os efeitos e horrores da guerra. É bem provável que muitos desses representantes da era Vietnam nem consigam entender a vida sem a guerra, não tenham recursos para compreender o que seja a paz. Afinal, a natureza provê animais e plantas de uma grande capacidade de se adaptar para tentar preservar as espécies. O grande problema é que criaturas assim adaptadas vão se proliferar, se multiplicar e, é claro, produzir espécimes semelhantes.
Nós, aqui deste lado dos trópicos, nunca tivemos guerras. Em compensação já é quase histórica a nossa submissão aos grilhões da corrupção e da violação dos preceitos éticos e morais. Isso não é privilégio da classe política como querem alguns, mas ela se esmera e se destaca nesse particular. Nas últimas semanas a imprensa tem, reiteradamente, trazido à tona uma quantidade incalculável de desmandos cometidos dentro do Congresso Nacional. Começando com a ressuscitação e re-energização de criaturas que já deveriam ter sido colocadas em algum museu de horrores, até a descoberta de um inchaço sem precedentes no corpo de funcionários das duas casas, o cenário que tem sido mostrado deveria provocar a mais profunda das indignações. Pior do que o conteúdo são as explicações que traduzem a completa ausência de um mínimo de pudor pelo que acontece.
Mas, como os poderes da república disputam acirradamente essa desonrosa posição de destaque na mídia, o legislativo sofre concorrência incansável do executivo que tem se esmerado para não ficar para trás. A transformação desbragada do governo federal em palanque eleitoral mesmo quase dois anos antes do pleito, a impudica auto-proclamação baseada em méritos alheios, a farsa das inaugurações de pedras fundamentais, as promessas marotamente mirabolantes, os comentários e atitudes em relação à crise internacional tem sido de uma irresponsabilidade e desrespeito que superam qualquer expectativa.
Enquanto isso tudo acontece e vai consumindo as energias do país, que papel tem desempenhado o principal interessado e vítima dos desmandos, a sociedade? Praticamente nenhum. O cidadão comum assiste a tudo como se não fosse de sua conta. E é exatamente da sua conta que saem os recursos para sustentar o espetáculo mambembe que vem sendo representado há décadas. O individuo prefere não se incomodar com a falta de honestidade, de princípios éticos e morais. Em vez disso, assume uma posição permissiva e, no mais das vezes, interesseira. Explícita ou implicitamente, apóia a corrupção fechando os olhos para ela, sendo condescendente, passando a mão na cabeça e concluindo que isso é assim mesmo. Em outras palavras, o cidadão brasileiro se tornou uma versão tropical daquele vietnamita infeliz que nasceu e cresceu no meio da guerra e que só conhece a ela como parâmetro. Os brasileiros e brasileiras de muitas gerações não sabem o que é viver numa sociedade honesta, ética e respeitosa. A cada eleição, o brasileiro se entrincheira ao lado dos mesmos piratas de sempre e, em troca de alguma coisinha ou, o que é ainda pior, da promessa de alguma coisinha, entrega o seu voto e os re-elege. Depois vai ao bar comemorar a vitória do seu representante e viver mais um mandato com as sobras do banquete em que o seu eleito vai se fartar. Tudo para que, nas próximas eleições a cena se repita.
Dizem que somos um povo criativo. É verdade. Nós temos conseguido criar, aqui do outro lado do mundo, a nossa versão tupiniquim da Guerra do Vietnam. Sem napalm, mas com muita fome. Sem as minas explodindo sob os pés dos soldados e os mandando aos ares, mas com um sistema de saúde e de educação absolutamente deteriorados e inoperantes. Sem tantos estupros, mas com a mesma violação ao respeito e à dignidade humanos. E, tal lá como cá, tudo parecendo ser muito normal, cômoda e fatalmente natural. Só é bom lembrar que tudo, sem exceção, tem um preço.
A Guerra do Vietnam deixou mais de um milhão de mortos (civis e militares) e o dobro de mutilados e feridos. Arrasou campos agrícolas, destruiu casas e provocou prejuízos econômicos gravíssimos no Vietnã. De quanto, exatamente, já é a nossa conta? Quanto já estamos pagando e quanto ainda vamos pagar? Talvez fosse bom começar a pensar no valor porque uma outra coisa é certa: na conta de quem essa conta é debitada. Exatamente na conta de quem acha que isso não é da sua conta.

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