quinta-feira, 28 de maio de 2009

Lúcio Flávio Pinto: Os ditadores e os poetas

Por que os ditadores odeiam tanto os poetas? Depois dos seus inimigos mortais, são os que primeiro perseguem e massacram. Efeito do fígado que não funciona direito, da comida ruim que comem, do amor mal sucedido e do mau humor, que bloqueia o óleo da vida nas juntas e articulações? Provavelmente. Além, é claro, de complicações no inconsciente, subconsciente e outros escaninhos ocultos da personalidade. E também por índole política ruim.

Pensei nisso várias vezes. Na mais recente delas em 1997, num início de noite deslumbrante ao lado do fórum romano, diante de um poeta, o albanês Fatos Lubonja. Íamos receber um prêmio do Archivio Disarmo. Lubonja mal saíra da prisão na qual fora atirado pelo ditador Enver Hoxha, na época o farol do socialismo para o PC do B. O crime em causa? O poeta escrevia poesias que desagradavam ao dono do poder. Ficou 19 anos no cárcere. Não foi abatido. Era o mais suave, atencioso e gentil na solenidade (mas estava crispado ao falar ao telefone com seus compatriotas em rebelião naquele momento contra a ditadura).

Certa vez foram se queixar a Karl Marx das atitudes consideradas politicamente incorretas do poeta alemão Heinrich Heine. Marx, de ordinário um furioso guardião da ortodoxia militante, desdenhou a denúncia. Heine era um grande poeta e isso era o que interessava quando se tratava de um artista. Os artistas são feitos de outro barro. As estrelas têm outro brilho quando eles estão por perto. São o sal do mundo.

Pensei nisso quando, mexendo em papéis para esta seção, encontrei um recorte da Folha do Norte de 22 de dezembro de 1968. Anunciava que, finalmente, seria lançado o livro Cantação, “antologia poética que reúne os maiores jovens poetas universitários paraenses”. Contribuíram com seus versos brancos (pela ordem alfabética da notícia) Carlos Queiroz, Fernando Jares Martins, Gengis Freire, José Arthur Bogéa, José Maria Villar, Lúcio Flávio Pinto, Rosenildo Franco, Sérgio Darwich e Walter Pinheiro.

A Polícia Federal foi à Grafisa, a gráfica onde os livros ainda se encontravam (por um costume sádico dessas empresas, de só entregar os volumes – e apenas alguns – em cima do lançamento, ou, às vezes, depois dele) e arrastou-os, sem ordem judicial nem nada, na marra e na violência, dando-lhes completo sumiço. A razão? Os poetas – com seus versos brancos – eram subversivos, talvez ateus, comunistas. Embora o lançamento, que acabou não havendo, por falta do que lançar, tivesse sido programado para depois de uma missa campal no Largo da Trindade, no final da tarde, num clima bem natalino, sob o patrocínio do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito, ainda funcionando no local (hoje ocupado pela Ordem dos Advogados).

O clima do país mudara drasticamente apenas uma semana e pouco antes do lançamento, em 13 de dezembro, com a edição do Ato Institucional número 5, o famigerado AI-5, um dos mais tristes e nefandos documentos da vida pública brasileira. Os poetas, de olho nas musas e nos sinais dos tempos, pareciam não se dar conta de que o país, que vivia sob uma ditadura disfarçada, seria submetido a partir daí a uma ditadura escancarada, conforme as definições dadas a posteriori pelo jornalista Elio Gaspari, na (ainda) tetralogia que escreveu sobre o regime militar (1964/1985).

Além de tentar ser poeta com meus companheiros de viagem, eu era jornalista profissional havia quase três anos. Circunstancialmente, participava da edição até o fechamento, nessa época em plena madrugada. Por isso li com atenção todos os telegramas que chegavam, relatando a crise política. Ao final, não tive dúvida: o tempo de viver na província se exaurira; eu tinha que encarar o monstro na sua toca. Fui dormir com a certeza de que devia me mudar para São Paulo.

No dia seguinte fui à direção de A Província do Pará, o jornal, e pedi demissão. Até um tempo atrás minha memória não me alertava sobre deliberação tão instantânea. Só recuperei a informação ao encontrar uma declaração feita a meu pedido, em setembro de 1978, pelo diretor administrativo da Província, Arthemio Guimarães, relatando minhas entradas e saídas do jornal, na minha fase de jovem errante à procura de um destino. Para efeitos trabalhistas, eu era redator quando pedi demissão naquele 14 de dezembro de 1968.

Por isso já não estava em Belém para o lançamento do pequeno volume de Cantação. Só tive notícia sobre o desfecho trágico quando já singrava outros rumos, estes turbulentos, na terra de Sérgio Paranhos Fleury, da Oban, dos plutocratas industriais que se colocavam no papel da Thyssen nos tempos do nazismo alemão, da TFP e de outros miasmas da ocasião. Quando prende poetas e apreende livros de poesia, os ditadores se sentem fortes e, de fato, estão fortes. Mas não são eternos. Nem mesmo tão duradouros quanto imaginam no momento em que praticam o ato de arbítrio e violência.


É o que está escrito nas estrelas e se acha reproduzido nos livros de poesia, em sua dignidade intrínseca, mesmo que os versos não sejam dos melhores, como muitos daquele Cantação, a começar pelos meus. Só democracias toleram versos de pé quebrado. A diferença entre um ditador que tudo pode e um poeta que só tem sua lira é que só estes podem ouvir estrelas, como observou o bardo Olavo Bilac. E como elas brilham.

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