sábado, 30 de janeiro de 2010

Política paraense: Tudo no leilão

Lúcio Flávio Pinto

Como das vezes anteriores, tudo indica que a eleição deste ano será disputada em dois pólos: pelos que exercem o poder agora e pelos que o exerceram ontem. Uma “terceira via”, como a anunciada pelo ex-governador Almir Gabriel, não passa de fantasia. Ou fraude.

Como acontece há vários anos, a menos de três meses do encerramento do prazo para o registro das candidaturas e a nove meses do 1º turno da eleição, o eleitor paraense tateia para identificar as tendências do processo eleitoral no Estado. Há um único pré-candidato, sacramentado no final do ano passado: o economista Simão Jatene, do PSDB, que já foi governador. Seu nome foi aprovado numa prévia partidária, que devia eliminar qualquer possibilidade de divergência através de consenso na cúpula dos tucanos, que detestam bola dividida. Aparentemente, essa unidade foi conseguida porque o único concorrente, o senador Mário Couto, desistiu e compôs com seu ex-quase adversário.

A desistência de Couto foi interpretada como uma traição pelo seu padrinho, Almir Gabriel, que jurava não pensar mais em voltar ao centro do ringue (apenas não queria que Jatene ficasse sob os holofotes). É pouco provável que o ex-governador venha a bater chapas com Jatene na convenção do PSDB, em abril. Não tem correligionários suficientes para isso. Mas desde o acordo de Mário Couto, Almir abandonou de vez seu domicílio no litoral de São Paulo, restabeleceu sua base física em Belém e tem concentrado sua bateria de ataques na direção daquele que era seu mais íntimo colaborador e amigo até recentemente. Essa metralhadora giratória tem feito estragos. Inclusive ao atirador, que, nesse ponto, repete a inusitada imperícia do seu novo desafeto, que fisgou o próprio olho numa de suas tantas pescarias pelo interior.

Dentre as várias denúncias que Almir tornou públicas, uma é de maior gravidade. Em outras circunstâncias, teria se transformado em escândalo. Disse que Jatene sempre foi um elemento de confiança da antiga Companhia Vale do Rio Doce, tanto durante os oito anos como o principal secretário na gestão de Almir como nos quatro anos seguintes, quando o sucedeu no trono do poder executivo estadual. Nenhuma novidade até aí, exceto a tentativa do ex-governador de se isentar de responsabilidade nessa parceria.

De fato, as principais negociações em torno do imenso contencioso entre a empresa e o Estado foram tratadas com (e por) Jatene. O governador, fiel ao seu estilo trombudo, com humor sujeito a súbitas mudanças dos ventos, permanecia na retaguarda. Ora aplaudia, ora criticava. Mas era sempre quem decidia. Em algumas situações forçou a Vale a ceder-lhe o que exigia. Em outras, quem cedeu foi ele. A moeda de troca nem sempre foi só – nem principalmente – a causa pública. Por isso, o melhor cenário para essas relações sempre foi mais o gabinete do que o palanque ou a praça. Se as paredes falassem, falariam muito mais do que o agora irado Almir.

Desta vez ele foi muito mais longe: insinuou que a Vale deu dinheiro não contabilizado a Jatene para a campanha na qual ele se elegeu, em 2002, contando para isso com o total apoio do então governador no cargo, no qual fazia questão de tudo saber e agora, por conveniência, adotou o cacoete celebrizado do presidente Lula, de nada saber. Continuando na denúncia, sugeriu que a Vale, a maior empresa privada do Brasil, pode ter contratado Jatene como assessor quando ele entregou o cargo de governador a Ana Júlia Carepa, do PT, em 2006, e não ao seu padrinho fiduciário, que tentou voltar à chefia do executivo estadual pela terceira vez e acabou derrotado.

Foi só uma insinuação, sem provas e sem rastros. As duas jornalistas que atenderam ao chamado do ex-governador e foram entrevistá-lo, na verdade, quase só o ouviram (Rita Soares, do Diário do Pará, e Ana Célia Pinheiro, do blog A Perereca da Vizinha, não puderam gravar a conversa; Ronaldo Brasiliense, de O Liberal, o terceiro convidado, desta vez não atendeu à convocação e o jornal dos Maiorana nada divulgou a respeito).

Foi o bastante, porém, para que a cidade fosse inundada por comentários e afirmativas sobre a relação contratual entre a Vale e Jatene, imaginada e “vocalizada” (como gostam de dizer tucanos e petistas), mas ainda sem provas. Mesmo que elas não surjam e o também ex-governador, na volta de mais férias no exterior, desfaça a onda de veneno, que pode prejudicar muito a sua candidatura, com quem contaria Almir Gabriel para abrir uma “terceira via” no processo eleitoral paraense, há muitos anos marcadamente bipolar (tanto no seu sentido ideológico quanto, talvez, psicológico)?

Dentro do seu próprio partido ele não tem mais liderança capaz de ameaçar a confirmação de Jatene, o preferido da maioria. Precisou ir atrás de reforço em outra freguesia. Diz já ter sido contatado por dois partidos, sem nominá-los. Atacando raivosamente uma prevenção suposta contra sua idade (77 anos), que só ele considera como a causa da campanha contra seu nome dentro do PSDB, garante estar em plena forma: seu baú de idéias conteria 120 projetos para desenvolver o Pará, um terço dos quais inteiramente novos, que ele concebeu à beira-mar, em Bertioga, indiferente aos apelos das orquídeas pela atenção tantas vezes prometida – e outras tantas ignorada.

Enquanto essa cascata de “projetos estruturantes” não desaba, o aríete para romper a competição em dois blocos políticos seria o combate à antiga CVRD, que é um Estado dentro do Estado. Nessa investida, é mais provável que, ao invés de voltar ao inquilinato no Palácio dos Despachos, na avenida Augusto Montenegro, o doutor Almir se torne personagem de um Cervantes nada adaptado aos tempos atuais. Quem pode peitar a Vale, que no Pará faz e acontece e não está nem aí para saber se no Bernardino aparece?

Jader Barbalho podia ser o Sancho Pança, capaz de aceitar o importante papel de coadjuvante, já que, contra todas as suas declarações, o sonho que ainda parece embalar o doutor Almir é se tornar o único cidadão eleito três vezes para governar o Pará? Por falta de sedução é que não deixará de ser. Na conversa com as repórteres, ele não poupou elogios àquele que se tornou a primeira causa do seu atrito com o pupilo até então querido. Justamente quando Jatene se aproximou de Jader para a aliança, que agora é a chave para a “terceira via”, Almir começou a destilar mágoa e o tratamento dispensado ao até então amigo do peito passou a ser característico dos inimigos.

Esse passado tão recente foi apagado e na memória foi inscrita a revelação, feita às repórteres, de que Almir sempre foi eleitor de Jader até que seus caminhos se dissociaram, quando o PSDB veio ao mundo da casca do PMDB (ou do útero). A partir desse momento, com a decisiva participação do doutor Almir e do seu ninho de tucanos, Jader passou a ser a expressão de todos os males do Pará, o Judas a ser malhado em todas as eleições, o boi de piranha para a passagem de outras manadas, não muito diferenciadas do bando que, sob a liderança do ex-ministro, andou pilhando o Estado e circunvizinhanças, mais ou menos próximas.

A posição de liderança de Almir Gabriel já não tem a solidez necessária para ancorar a inauguração da pluralidade político-eleitoral, tão ansiada e tão frustrada no Pará. Não só porque Jader Barbalho e outros cardeais menos votados o conhecem muito bem. É também porque, como quase todos os demais, por vias diversas, raramente assumindo de público essa condição, os políticos comem na mão da Vale (e de outras empresas menos capitalizadas e assediadas). Há um ambiente de expectativas e de necessidades favorável ao surgimento de uma candidatura que não seja a derivada do exercício presente do poder, ou remanescente do poder que foi destronado. O que não há é o cimento para consolidar essa ânsia. O Pará se tornou uma bacia das almas de lideranças.

Por isso, enquanto não surge um terreno propício à pastagem de uma zebra eleitoral, as especulações são feitas em torno da composição dos dois campos litigantes. Por enquanto, um é o da governadora Ana Júlia Carepa, em busca da reeleição. Outro é do ex-governador Simão Jatene, atrás do qual os tucanos tentam retornar ao domínio das rédeas, que foram suas durante 12 anos seguidos, sem mudar a substância da condição do Pará.

Em seus três anos de mandato, Ana Júlia também não cumpriu suas promessas. Seus principais “projetos estruturantes” são federais, comandados por Brasília, que nunca teve bons ouvidos para os clamores paraenses (e amazônicos). Se a União cumprir o cronograma físico-financeiro do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e tiver verbas para o assistencialismo lateral de massa, a governadora terá o que inaugurar, indo de um ponto a outro do Estado (ela tem zanzado, sim, mas com pouca produtividade), e não apenas uma rotatória em Belém (sucessora melhorada do túnel subaquático e do tobogã de carro em fila única da administração petista em Belém do também arquiteto Edmilson Rodrigues).

Será o suficiente para tirar a governadora do limbo da alta rejeição, talvez até maior do que a de Jader Barbalho, na qual ela ainda se encontra? É possível que sim, mas não há certeza. De olho no próprio medidor de rejeição, Jader já decidiu: decisão, só no mais tardar que for possível. O tempo é, mais uma vez, o seu maior aliado, qualquer que venha a ser a definição que dará através do PMDB. Se Almir Gabriel já considera não só possível, mas salutar, um encontro com o anhanga de ontem, para Jader não há incompatibilidades de agenda. Ele pode conversar com qualquer um, principalmente por ser procurado para esses encontros. Por conseqüência, pode fazer acordo com quem quiser. Ou não fazer acordo.

Daí tantas especulações sobre quem vai formar com quem. Se o PTB de Duciomar Costa fornecerá o candidato a vice-governador ou ele sairá do aliado PR. Se o prefeito de Belém, contra todas as aparências, comporá com o deputado federal Jader Barbalho, numa nova aliança, ou ambos enlaçados ao PT. Ou se Jader estará ao lado de Jatene ou se formará um novo velho pólo, com um peemedebista na cabeça de chapa. Nessa algaravia de hipóteses, o que não conta é as divisões ideológicas, as divergências políticas, as desavindas visões de mundo, que simplesmente inexistem. Uma verdade axiomática de ontem some hoje. E vice-versa: o impensável se materializa de súbito. O absurdo se torna racional. Tudo pode mudar. Menos o Pará.

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