Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal
Antes da exigência, criada em 1969 pela Junta Militar, de que só poderia exercer a profissão de jornalista o portador de diploma do curso superior de comunicação social, a admissão às redações dependia da qualificação do pretendente. Algumas vezes a qualidade era de quem o indicava, mas mesmo com a ação desse “pistolão”, certos candidatos foram aprovados porque revelaram aptidão para o “métier”. Na maioria das vezes, porém, o teste era prático e sumário: mal manifestava o seu desejo, o aspirante a jornalista era logo despachado para cumprir uma tarefa e do seu desempenho na volta dependia se ia ou não ser admitido. O componente vocacional era considerado vital. A regra era de que jornalistas encruados de pronto – ou pouco depois – revelavam o que eram.
A principal praga da profissão era o excesso de colaboradores e de jornalistas de expediente. Essas pessoas queriam a carteirinha para entrar de graça em locais de diversão publicar, pagar metade da passagem de avião, serem isentadas de imposto de renda e obterem financiamento integral da casa própria. Por essas benesses, se dispunham a trabalhar de graça e fazer todos os jogos que os patrões lhes propunham, inclusive sabotar as iniciativas dos verdadeiros profissionais por melhores salários e condições de trabalho.
O marechal Castelo Branco fez um grande bem ao jornalismo quando extinguiu todas essas mordomias, que serviam apenas para amolecer a imprensa e torná-la mais negocista, comercial. Claro que o primeiro presidente do ciclo do regime militar queria mesmo era punir os jornalistas pelo desestímulo geral à profissão e porque medidas draconianas contra os críticos passaram a ser adotadas. De qualquer maneira, porém, a partir daí a picaretagem diminuiu bastante nas redações.
Pessoas com vocação, interesse e curiosidade apareciam constantemente nas redações, que eram seu primeiro destino. Só depois iam procurar o sindicato da categoria, para a filiação, ou o Ministério do Trabalho, para o registro legal. Muitos grandes jornalistas jamais fizeram uma ou outra coisa. Nem por isso deixaram de ser os profissionais de fato que eram – e de merecer a admiração que provocavam. Havia um fluxo contínuo, de chegada e de saída, mas o saldo era positivo. Não foi por outro motivo que a imprensa evoluiu admiravelmente durante a IV República (de 1946 a 1964).
O monopólio do diploma do curso de comunicação social estancou a vertente natural de drenagem de vocações para as redações, aumentou o controle oficial, induziu a censura e burocratizou as relações profissionais durante 30 anos. No ano passado o Supremo Tribunal Federal, escrevendo certo por linhas tortas (o voto vencedor é fraco e não incorporou os argumentos mais sólidos dos que defendiam a volta do Brasil ao padrão mundial da profissão de jornalista, que não exige o diploma, mas o estimula), acabou com a reserva de mercado para os graduados em comunicação social. Qualquer um pode agora ser jornalista. Basta provar que sabe ser jornalista, o que requer curiosidade operativa, hábito de leitura, capacidade de descobrir fatos, de formar fontes e de escrever com clareza e objetividade. E uma qualidade que tem sido desprezada ou ignorada: o compromisso de repassar as informações à sociedade, sobretudo aquelas informações que influem sobre as decisões do dia a dia.
Os sindicatos e demais órgãos corporativos se mobilizaram para colocar uma nova lei de imprensa no lugar daquela, de 1967, que o Supremo declarou inconstitucional. O projeto dessa nova lei, marcada pelo ranço autoritário dos patronos da liberdade de imprensa (sempre dispostos a suprimi-la quando assumem o poder), está tramitando no Congresso Nacional. Mesmo se aprovada, poderá ser posta abaixo por um questionamento ao STF. Se a corte mantiver o entendimento estabelecido, revogará o novo diploma legal. Enquanto isso, a pretexto de que a decisão do STF não é auto-aplicável, as entidades sindicais estão criando um clima de confusão e insegurança no país.
É certo que a deliberação da corte suprema não restabeleceu o status quo ante. As mordomias anteriores inundaram as redações de picaretas e quintas colunas. Mas já nessa época os bons profissionais desfraldaram a bandeira de restringir ao máximo a figura do colaborador (que formava o exército de reserva de mão-de-obra do patrão). Só deveria caber nessa abertura o cidadão que realmente podia contribuir com matéria da sua especialidade para o conhecimento coletivo, com participação episódica e paga. Todos os demais tinham que se enquadrar nas normas da redação.
Hoje, o fator de atração de novos jornalistas, que fazem inchar a disputa por uma vaga nos cursos de comunicação social, é a aspiração a se tornar celebridade – de preferência, instantânea ou rápida. E mais ainda: com o mínimo risco possível. O novo profissional dotado de diploma, com as exceções de praxe, dos neojacobinos, se amolda muito mais facilmente às circunstâncias e restrições para poder escalar com velocidade a carreira. Evita arestas, conflitos e riscos, embora procure manter seus princípios – em tese. A fama pode ser produto do acaso e da circunstância. A exclusão e a estigmatização resultam de erro cometido.
Mesmo com esse novo fator, que apenas se insinuava quando a terrível Junta Militar pós-AI-5 impôs o diploma, não há motivo para alarme. Com registro no Ministério do Trabalho ou filiação a um sindicato, o candidato, quando chegar à redação, terá de provar que, com ou sem diploma, com ou sem qualquer dos registros, sabe escrever bem (e rápido), é capaz de apurar os fatos de uma pauta, por mais complexa que ela seja, consegue informações com fontes confiáveis e bem supridas, gosta de manter a opinião pública atualizada, mantém-se ao corrente dos acontecimentos e se realiza fazendo jornalismo. Aos sindicatos cabe a tarefa de se manterem vigilantes para não permitir que aproveitadores penetrem nas empresas jornalísticas sob a figura de colaboradores e cumprir as demais obrigações estatutárias, que já existiam antes de 1969.
A filiação ao sindicato tem que ser deferida, assim como o registro no Ministério do Trabalho, conforme a justiça foi chamada a exigir pelos interessados. Isso não significa que o portador desses papéis terá garantida a sua condição de jornalista. Se ele não exercer a profissão, o sindicato pode excluí-lo, como permite a legislação, e solicitar ao Ministério do Trabalho o cancelamento do registro, já que o cidadão não é jornalista profissional. Como a própria expressão não deixa dúvida, não existe jornalista amador. Para manter os registros, a pessoa precisa se profissionalizar. Se não trabalha, não é profissional. Logo, seu título é irregular. Deve ir cantar em outra freguesia.
A exceção é a figura do colaborador, mas sua caracterização legal possibilita aos sindicatos limitar o contingente de colaboradores de cada empresa, fiscalizar se o que eles fazem se enquadra na norma e exigir que sejam remunerados. Todo aquele que não atender as exigências, será excluído. Era mais ou menos assim no Brasil e no mundo quando os donos do poder, no período mais negro da história republicana brasileira, decidiram, pela primeira vez na história mundial, que devia ser diferente. Essa roda nasceu quadrada e não há malabarismo que a ajeite. Melhor voltar à roda redonda, para abusar da redundância e, assim, caracterizar o mal-entendido dessa história surrealista, que já devia ter tido um ponto final.
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