sexta-feira, 12 de março de 2010

Lula e a greve de fome

Lúcia Hipólito:


Apoiado em índices estratosféricos de popularidade, aclamado no Brasil e no exterior, considerado o "homem do ano", "um dos mais importantes da década", elogiado por jornais e revistas estrangeiras, o presidente Lula decidiu que não tem contas a prestar a ninguém.

Lula nunca teve problemas de relacionamento com ditadores. Da África, do Oriente Médio, da Ásia, da América.

Elogia o presidente do Irã, abraça-se com Kaddafi. Com Fidel, então, Lula chega a revirar os olhinhos de tanta alegria.

Uma ditadura, o governo mais embolorado da América, uma relíquia do século passado, com os irmãos Castro perdidos em devaneios antiimperialistas.

Tudo tão antigo. Como é também antigo o desrespeito do governo de Cuba aos direitos humanos, como são antigas as prisões cubanas, como é antigo o hábito de amordaçar qualquer tentativa de liberdade de expressão, seja uma blogueira ou um ativista de direitos humanos.

O presidente Lula foi mais uma vez a Cuba e chegou justamente no dia em que morria, depois de 82 dias de greve de fome, o operário Orlando Zapata. Era um preso político, um preso de consciência.

Fotografado às gargalhadas ao lado dos irmãos Castro, Raúl e Fidel, pálidas caricaturas da Guerra Fria, Lula, ao ser perguntado sobre a morte de Zapata... botou a culpa no morto. Quem mandou fazer greve de fome?! Onde já se viu?!

Muito criticado, no Brasil e no exterior, o presidente saiu pela tangente, afirmando que pessoalmente é contra greve de fome como recurso de prisioneiros e que não tem por hábito imiscuir-se na política interna de outros países.

Vamos esquecer, por um momento, dos elogios à eleição do presidente do Irã ou mesmo a recusa a reconhecer as eleições presidenciais em Honduras.

Vamos nos concentrar nos presos políticos e suas greves de fome.

Ontem, o presidente Lula realmente extrapolou. Entrevistado pela agência de notícias Associated Press, declarou o presidente: "Greve de fome não pode ser utilizada como um pretexto de direitos humanos para libertar pessoas. Imagine se todos os bandidos que estão presos em São Paulo entrassem em greve de fome e pedissem libertação."

Ao comparar presos políticos com bandidos, o presidente desrespeita, não apenas sua própria biografia, mas faz pior: agride frontalmente a ministra Dilma Rousseff, sua candidata à presidência da República.

Não é segredo para ninguém que Dilma foi presa política durante alguns anos. Torturada. Não sei se fez greve de fome, mas isto é irrelevante. Ao compará-la a um bandido, o presidente Lula comete uma grosseria que nem os gorilas da direita mais hidrófoba ousaram, durante a ditadura.

Uma das greves de fome mais emblemáticas durante a ditadura brasileira durou 32 dias. Preso no Presídio Frei Caneca, no Rio de Janeiro, Nelson Rodrigues Filho participou, junto com Perly Cipriano e Jorge Raimundo Júnior, de uma greve de fome que só terminou com a aprovação da Lei da Anistia pelo Congresso Nacional, em 22 de agosto de 1979.

O presidente Lula tem todo o direito de se relacionar com ditadores alegando razões de Estado.

O presidente Lula tem todo o direito de desrespeitar a própria biografia.

Mas não tem o direito de desrespeitar a trajetória e a luta política de milhares de brasileiros, alguns até muito próximos dele.

O presidente Lula pode muito, muito mesmo. Mas não pode tudo.

Ainda bem.

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