sexta-feira, 12 de março de 2010

Tiro pela culatra

Lúcio Flávio Pinto

Editor do Jornal Pessoal

Manobras desastrosas ameaçam a reeleição da governadora Ana Júlia Carepa. Candidata quase certa a passar para o 2º turno, em outubro, ela pode enfrentar uma coligação mais forte na nova eleição e perder para uma aliança surpreendente, liderada por Jader Barbalho.

O Partido dos Trabalhadores abriga em sua sigla tantos grupos – distintos e divergentes – que nem precisa de inimigos para enfrentar: basta que os amigos divirjam para que a força da legenda fique ameaçada. Esse é um fácil diagnóstico de aplicação genérica. Mas no Pará essa cizânia (como gostam de dizer os militares, intolerantes às cisões internas, por força da exigência hierárquica da instituição) se acentua pela falta de comando e liderança fortes. A governadora Ana Júlia podia ocupar essa posição, graças aos poderes que concentra. Mas se acumulam as demonstrações de que lhe faltam as qualidades de líder.

Ela própria complicou gravemente seu caminho para a reeleição. Parecia que seu maior desafio seria estabelecer uma aliança mais sólida com seus principais parceiros, em especial o PMDB, e compor a base aliada com novos e surpreendentes aliados, como o PTB (maior adversário na última eleição municipal), de tal maneira a harmonizar o esquema nacional pluripartidário formado pelo PT para transformar o “poste eleitoral” chamado Dilma Rousseff na candidata favorita à sucessão do presidente Lula.

Foram tantos os erros cometidos que por pouco a governadora não se viu diante da iminência de um fato que deveria ser normal e até desejável nas democracias, mas se tornou quase um pecado mortal para os partidos políticos brasileiros, incluindo o antes alternativo PT: a disputa entre candidatos na convenção. Os grupos uterinos do PT ameaçaram levar a prefeita de Santarém, Maria do Carmo Martins, a bater chapa com Ana Júlia. Com a máquina oficial nas mãos, a governadora é a melhor candidata que o partido tem para a eleição de outubro. Mas minoritária internamente, ela poderia perder na convenção.

O gesto que colocou as pretensões de reeleição de Ana Júlia foi primário e desastroso. Seu grupo, a Democracia Socialista, não conseguiu criar nenhuma liderança política de expressão no Estado, talvez porque seus integrantes atuem com mais desenvoltura nos gabinetes – e falando – do que no imenso território paraense, pelo qual se pulverizam os votos. O principal candidato da DS acabou sendo o agora ex-chefe da Casa Civil. Mas Cláudio Puty é um neófito em política, exceto a estudantil (e não mais naquele tipo de política estudantil que formava quadros para a política partidária).

Sem o apoio da máquina e o apadrinhamento total da governadora, Puty não se elegeria vereador em Belém. Daí sua presença constante e ostensiva no controle da máquina governamental e nos deslocamentos da governadora ao interior. Mas essa providência não bastou: era preciso criar a cadeia que leva ao voto, integrada por intermediários que vão do candidato a um cargo inferior (e por isso trabalha casado com o candidato principal) até o cabo eleitoral, fantasiado agora de líder comunitário.

Essa expansão colidiu com esquemas que foram montados antes e já estavam em funcionamento para apoiar outros candidatos. Os atritos foram se agravando e começaram a provocar conflitos. Uma recém-criada base de apoio a Puty no Incra de Marabá teve que ser desfeita por causa da reação do grupo do deputado federal José Geraldo, que controla o órgão. Essa vitória estimulou as outras tendências a avançar sobre a DS e lhe impor outros recuos, que culminaram no afastamento antecipado de Puty da chefia da Casa Civil.

A DS é a menor das divisões internas petistas e só aparenta ser maior porque venceu a eleição para o governo em 2006. Como explicar essa vitória se o grupo nem é predominante no PT e sua principal líder, consciente da sua expressão, vinha recusando aceitar a candidatura, até que o presidente Lula e o deputado federal Jader Barbalho praticamente a obrigaram a enfrentar o tucano Almir Gabriel, com a garantia do esquema que os dois líderes acertaram em Brasília? Os fatos e os números provam: sem o PMDB, o ex-governador do PSDB teria conseguido seu terceiro e glorioso mandato. Sem o qual perdeu o rumo e o sentido biográfico.

Fazer aliança com o PMDB em 2006 implicava o preço que o partido de Jader Barbalho estabeleceu, com o aval do presidente Lula. O PT do Pará pagou a primeira promissória, cedendo cargos no primeiro escalão do governo aos peemedebistas. Mas tratou de colocar leões-de-chácara à porta dos gabinetes e desviar funções para seus representantes, esvaziando os cargos cedidos. O PMDB engoliu vários sapos porque, mesmo com as sobras de cada uma dessas estruturas de poder, teve espaço para suas operações típicas.

Mas quando o espaço encurtou demais, o partido resolveu jogar alto. Primeiro foi puro blefe: com as ameaças e os primeiros atos de insubmissão esperava restabelecer a composição original. Os “luas pretas” de Ana Júlia apostaram em que os peemedebistas eram aliados compulsórios, não lhes restando alternativa senão acomodar-se com o que lhes era destinado. Foi então que Jader Barbalho decidiu a ignorar o PT estadual e passou a tratar apenas com o PT federal. Foi ele um dos peemedebistas mais ativos em favor da renovação da aliança nacional e da candidatura de Dilma Rousseff, combatendo os que queriam uma candidatura própria do partido. Talvez os luminares do PT paraense não tenham percebido que Jader construíra seu próprio palanque, mesmo sem se apresentar como candidato ao maior dos cargos em disputa. Qual candidato colocar sobre o tablado passou a ser a questão pendente, ainda não decidida (mas com opções postas à mesa, inclusive a de Barbalho). A dissidência, porém, era uma realidade a caminho do rompimento.

Se a governadora comandasse de fato seus correligionários, a situação seria outra. Mas Ana Júlia demonstrou ser pouco mais do que uma líder estudantil e sindical, como seus gurus de gabinete. Obrigada a aceitar que os secretários com pretensões eleitorais saíssem dos seus cargos no dia 1º, um mês antes do prazo legal de tolerância, ela já deixou à mostra uma fraqueza. Ao tentar “dar a volta por cima”, retirando poderes inerentes à Casa Civil antes de entregá-la à tendência concorrente, praticou outro desastre.

A manobra era tão evidente que mais uma vez teve que recuar. Só que agora de forma inusitada: o futuro substituto de Cláudio Puty ameaçou não assumir o cargo através de mensagem mandada através de telefone celular. Talvez tenha sido a primeira baixa comunicada por um torpedo virtual. Everaldo Martins soube do golpe através da esposa, que é secretária estadual de pesca, e nem se preocupou em falar pessoalmente com a governadora.

Todos esses desgastes teriam sido poupados se a DS tivesse consciência da própria expressão (ou falta de expressão) e aceitasse partilhar o poder de forma mais justa e coerente do que a desproporcional concentração de poder que promoveu em benefício próprio. Na segunda-feira, dia 1º, os três novos secretários assumiram no lugar dos que saíram para se tornarem candidatos na eleição de outubro (um quarto, Valdir Ganzer, dos Transportes, teve que permanecer no cargo, do qual já tinha sido exonerado, por causa de mais uma trapalhada petista: se assumisse como assessor especial, sinecura reservada aos demais, que não possuem cargo político, teria seu mandato de deputado estadual cassado). No ato, havia maquilagem suficiente para criar uma máscara de unidade partidária, que inexiste. E uma força que se tornou miragem.

Muita gente participou da solenidade e pequenos partidos aliados mandaram seus representantes. Mas não apareceu ninguém das principais forças políticas que poderiam aderir à candidatura da governadora: PMDB, PDT e o bloco PTB/PR (que controla a prefeitura de Belém). A ausência pode ser apenas um recado e não uma atitude de separação definitiva – ou pelo menos ainda não. Mas se representar a constituição de uma nova aliança eleitoral, as possibilidades de reeleição de Ana Júlia Carepa começarão a se reduzir. Com o que já possui, ela tem todas as condições de passar para o 2º turno e, talvez, com mais votos do que o segundo concorrente. Mas cairia para uma condição de inferioridade nessa segunda eleição, se os votos do PSDB migrarem para a coligação liderada pelo PMDB – ou vice-versa.

Se ainda precisava de estímulo para o rompimento, Jader Barbalho o recebeu de bandeja, entregue pelo deputado petista Zé Geraldo. Num discurso contundente no plenário da Câmara Federal, em Brasília, ele acusou o ex-governador de manter o Pará como refém da sua vontade e dos seus caprichos. Em 2006 o PT nem se preocupou com isso porque era a única maneira de chegar ao poder. Mesmo hoje, sua preocupação é retórica porque continua tentando refazer o acordo com Jader, mesmo considerando-o um seqüestrador (por estar impedindo, em época pré-eleitoral, a aprovação de dois novos empréstimos solicitados pelo Estado, no valor de mais de 550 milhões de reais, a serem agregados a R$ 2 bilhões já aprovados na Assembléia Legislativa desde o início do governo Ana Júlia) e o deputado Carlos Bordalo alegar que Jader não comanda o PMDB. Como para todos os outros partidos, para o PT as palavras existem para esconder a verdade, não para revelá-la.

O presidente do partido garantiu que o remanejamento da função de contratar DAS e comissionados, que estava no âmbito da Casa Civil, para a Secretaria de Governo, visava o desenvolvimento do Estado e não esvaziar o cargo que seria cedido a outra tendência petista. Quando a governadora foi forçada a voltar atrás e devolver esses poderes ao chefe da Casa Civil, o alegado bem público foi esquecido. Em compensação, foi dito que a medida não era oportunista: vinha sendo estudada há muito tempo. Ainda assim, foi constituído às pressas um “grupo de trabalho” para examiná-la, como se fora nova. Palavras, nada mais do que palavras.

A substituição de Cláudio Puty por Everaldo Martins significaria uma evolução no sentido do pluralismo e do descomprometimento da Casa Civil em relação às eleições? Não: Everaldo deverá fazer o que for possível pela candidatura do irmão, deputado estadual Carlos Martins, e pelos interesses da irmã, a prefeita Maria do Carmo, além dos dele próprio, que, na secretaria de planejamento de Santarém, foi extremamente concentrador de poder. A solução, portanto, é de meia sola.

Pelo que tem feito politicamente, Ana Júlia estará dando razão ao adversário Almir Gabriel. Segundo ele, governador que tem a máquina oficial nas mãos só perde por incompetência, como teria feito seu correligionário Simão Jatene e está sendo Ana Júlia desde o primeiro dia do seu mandato.

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