domingo, 20 de junho de 2010

José Ramos Tinhorão, jornalista e historiador

Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal

José Ramos Tinhorão tem duas merecidas famas. Sempre foi considerado um dos mais límpidos textos do jornalismo brasileiro. Seu trabalho como copy que reescreve matérias dos outros, tem exemplos antológicos, de manual. É também um dos jornalistas que mais escreveu livros do Brasil: aos 82 anos, soma 28, editados no Brasil e em Portugal. Vários deles resultaram de longas e profundas pesquisas, que só agora os jornalistas-escritores fazem com mais freqüência. Tornaram-se indispensáveis fontes de referência sobre a história da música brasileira. Mas também contêm algumas das mais desastradas avaliações sobre compositores, instrumentistas e cantores, aqueles não se enquadram nas exigências e gostos de Tinhorão. Para ele, a bossa nova, a música brasileira de maior sucesso internacional, é lixo.

Personagem tão polêmico acaba de ganhar uma biografia, escrita pela também jornalista paulista Elizabeth Lorenzotti: é Tinhorão, o legendário(Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo, 277 páginas), na coleção Imprensa em Pauta. A carreira jornalística de Tinhorão, como autor de legendas, títulos, “olhos”, reportagens, colunas e textos finais (a partir de originais de terceiros), merece o aposto do título: é legendária mesmo. Na trajetória de quase 60 anos como jornalista, esteve nas principais redações da imprensa brasileira – e justamente nos seus melhores momentos.

Começou no jornalismo ainda estudante, em 1951, na Revista da Semana. Dois anos depois, um pouco antes de se formar em jornalismo (e também direito) pela famosa Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro, foi contratado pelo Diário Carioca, criado em 1928 e que, até o final da década de 50, “reuniu uma das mais brilhantes equipes de jornalistas do Rio de Janeiro”. Depois foi para outro marco da imprensa brasileira, que sucederia o DC em prestígio, o Jornal do Brasil, da condessa Pereira Carneiro (e de Nascimento Brito), e o Correio da Manhã em 1963. Passou em seguida por emissoras de rádio, televisão, jornais e revistas. Mas hoje, diz Elizabeth, foi banido das grandes redações.

Começou a escrever livros em 1966 e nunca mais parou, dedicando-se a eles cada vez mais tempo e atenção. Tinha entre 10 e 12 anos quando começou a se interessar por música popular, segundo a biógrafa, mas só começou a escrever sobre o tema quando, já com 32 anos, foi instigado por Reynaldo Jardim, criador e editor do famoso Caderno B do Jornal do Brasil. Uma série de matérias sobre o jazz iria chegar ao fim e o poeta-editor pediu que Tinhorão emendasse uma série sobre o samba.

“O escritor fez de Tinhorão um eremita da cultura brasileira”, atesta Beth. Ele se queixa: “Quando fiz a História Social da MPB, a primeira edição foi portuguesa, apesar de ser música brasileira. Outro que nunca saiu no Brasil, As origens da canção urbana; e mais Fado Dança no Brasil, cantar de Lisboa e outros. E assim foi”. Seus livros levam de seis a oito anos para se esgotar. Musica popular, um tema em debate é o livro de maior popularidade: já teve cinco edições, o que é pouco para publicação com mais de três décadas nas estantes. No entanto, o próprio Tinhorão chegou a computar 2.945 citações de seus livros, artigos em periódicos, documentos impressos e manuscritos. É muito citado por acadêmicos de outros países, principalmente ingleses e americanos.

“Uma de suas broncas é não ter o reconhecimento dos intelectuais acadêmicos”, diz a biógrafa. Apesar de ser jornalista e advogado, ter pós-graduação em História Social pela Universidade de São Paulo, em 1999. Rejeita associar essa bronca a mágoa, inveja ou frustração. Acha que é a manifestação de “certa miséria intelectual” no Brasil.

Embora o leiam e o usem, em virtude do rico material que apresenta em seus livros, os acadêmicos, citam-no pouco. Temem a concorrência ou admitir a própria insuficiência, apesar de todos os títulos que carregam. “Eu desencavei uma bibliografia que os outros, na burocracia acadêmica, não foram procurar”, garante Tinhorão.

Quando os acadêmicos o citam, não é como pesquisador ou historiador, mas como jornalista. Só em 2008 ele foi tema da primeira dissertação de mestrado no meio acadêmico, defendida por Luíza Maranhão na Universidade Federal Fluminense. Tinhorão prefere definir-se como “um historiador de cultura urbana com interesse primordialmente dirigido ao fenômeno da criação de música da cidade, modernamente chamada música popular”. Talvez esteja, sem querer, sacramentando o preconceito contra o jornalista, que só é reconhecido pela academia quando agrega um título “mais legítimo” à sua profissão, que os intelectuais consideram de categoria inferior, sem confiabilidade.

A capacidade que Tinhorão tem para a pesquisa obrigou os acadêmicos a ter que engoli-lo, mas é grande o questionamento quando ele sai da reconstituição dos fatos, da busca pelas origens das manifestações atuais, e dá opinião sobre música. Chega a desclassificar Tom Jobim como plagiador e ironiza João Gilberto. Tudo que não lhe recende a pureza, às raízes populares, é suspeito, quando não sem valor. Diz adotar o materialismo dialético como método de análise. Mas é muito materialista e pouco dialético. Rígido e esquemático. Não destituído de preconceitos. Nas entrevistas à autora, por exemplo, não cita o nome da primeira mulher, com quem esteve casado por 16 anos e de quem se separou em 1979. Talvez por ser “muito burguesa”. Como a bossa nova, provavelmente. José Ramos Tinhorão é um excelente taxonomista, mas jamais sua botânica chegaria à visão de um Darwin.

Devemos ser gratos e reconhecidos ao seu hercúleo trabalho de coleta de material, uma arqueologia que resultou num valioso acervo, formado por mais de 12 mil discos, que foram lançados desde o início do século passado, 35 mil partituras, milhares de livros e documentos raros, que transferiu (através de um “acordo razoável”) para o Instituto Moreira Salles. É o melhor de Tinhorão, agora ao alcance de todos.

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