Lúcio Flávio Pinto
A maior obra do Brasil começou oficialmente no início do mês com a emissão da primeira ordem de serviço para a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, que será a quarta maior do mundo. Menos de um ano atrás, quando a concessão foi a leilão, o projeto era no valor de 14 bilhões de reais. Hoje, é de R$ 25 bilhões. Não será surpresa se chegar a R$ 30 bilhões, a previsão dos críticos do empreendimento. Ou superar esse patamar.
Embora o projeto tenha duas décadas de existência, ele chega à fase executiva sem o amadurecimento devido. Durante esse período, os questionamentos e as dúvidas se sucederam, à medida que o debate se aprofundou, e deverá persistir nas arenas pública e judicial. Mesmo com um acervo de milhares de manifestações escritas ou orais sobre o tema, dentro e fora do país, a sensação mais forte para quem acompanhou a trajetória é a da insuficiência de dados e insegurança quanto às garantias dadas pelos executores da empreitada.
O governo, porém, não partilha esses sentimentos. A convicção, ainda rarefeita no governo Lula, se tornou um axioma da administração Dilma: a matriz energética brasileira continuará a se basear na energia de fonte hidráulica; por consequência, as novas adições à produção nacional terão que vir da Amazônia, onde está a maior bacia hidrográfica do planeta. O resto é circunstâncias.
O governo federal já anunciou um plano de investimentos de R$ 210 bilhões para os próximos 10 anos, algo como uma usina de Belo Monte por ano (claro, incluindo os outros itens, além da geração). Desse total, 40% serão aplicados na Amazônia, em 20 novas hidrelétricas, com capacidade para gerar 15% de toda a energia produzida atualmente no país. Em 2020, portanto, a região responderá por quase um quarto da energia nacional.
As resistências a esse plano foram crescentes e consistentes, mas o governo, vencido o prazo de tolerância, que estabeleceu unilateralmente, para as contestações, decidiu passar por cima dessas razões. Agiu como se fosse uma das quase 600 máquinas pesadas que começarão a chegar nesta semana ao canteiro de obras.
O fino véu da novidade foi rasgado por essa decisão. As novas mega-hidrelétricas na Amazônia seriam de responsabilidade da iniciativa privada. Com seu interesse pelas concessões públicas, os empresários garantiriam que se tratava de negócio rentável, do menor custo e da maior racionalidade. O poder público se restringiria à função de ordenador, fiscalizador e cobrador de resultados.
Nada disso aconteceu. O momento mais definidor foi quando dois dos maiores sócios da concessionária pularam o balcão. Ao invés de bancar a obra e explorar o seu produto, a energia, como empreendedoras. a Construtora Camargo Corrêa e a Odebrecht voltaram à condição tradicional, de empreiteiras.
Deixaram de aplicar capital – próprio ou emprestado – para viabilizar o projeto. Passaram a receber pelos serviços prestados na construção. Concluíram que a hidrelétrica de Belo Monte não é um bom negócio, exceto para os que vão ganhar para torná-la uma realidade.
Mais do que qualquer outra empreiteira, a Camargo Corrêa sabia muito bem o
que estava fazendo. Foi ela que construiu a hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, também no Pará, ainda a quarta maior usina de energia do mundo. E há quase quatro décadas mantém um forte canteiro no local. Inicialmente, empenhado na instalação dos equipamentos eletromecânicos da usina. Nos últimos tempos, na construção de uma das maiores eclusas do mundo, para a transposição da enorme barragem de concreto, com 70 metros de altura.
Motivos não faltaram para a desistência. A energia firme de Belo Monte será de apenas 40% da sua capacidade nominal, de 11 mil megawatts. É rendimento abaixo da média nacional, de 55%. Os construtores têm mil e um argumentos para contraditar essa verdade, mas é melhor dar atenção a um detalhe: o maior fator de carga entre as grandes hidrelétricas, de 70%, será o de Santo Antônio, em Rondônia.
Não só porque o rio Madeira tem fluxo constante, ao contrário do Xingu, sujeito a uma acentuada sazonalidade do regime hídrico: é principalmente porque a montante está sendo construída outra usina de grande porte, Jirau, com energia firme de 57%, que garantirá mais água para a hidrelétrica rio abaixo, a jusante. É assim que está sendo feito no Tocantins, com mais hidrelétricas Tucuruí rio acima. Era assim que devia ter sido feito também no Xingu, até que os monumentais reservatórios alarmaram a todos, por seus efeitos terríveis, e o debate ecológico estancou o planejamento original.
No papel, não mais será assim. O governo construirá apenas Belo Monte e nenhuma outra usina a mais no Xingu. Mas quem pode garantir se, na hora do “vamos ver”, aplica-se a política do fato consumado, como agora em Belo Monte e um pouco antes em Santo Antônio e Jirau? A cada fonte de resistência encontrada, um elemento de cobertura do “novo modelo energético” foi se desprendendo. Afinal, revelou-se o que era velho: o modelo estatizante.
As empresas privadas são figurantes do lado do risco do empreendimento. As empresas estatais, sócias amplamente majoritárias nas sociedades que se formaram, respondem pelo empreendimento, como a holding Eletrobrás e suas subsidiárias: Eletronorte, Furnas e Chesf. Do lado do financiamento, a conta é bancada pelo BNDES, com condições suficientes para suportar o elemento de surpresa do “fator amazônico”.
Só quando – e se – o projeto se firmar, à custa de muitos bilhões de reais e desafios socioambientais e tecnológicos, o modelo será retomado. Mas para renovar outra velharia histórica: a consolidação da distante Amazônia também – e, sobretudo – como uma colônia energética, pontilhada de gigantescas usinas, que se conectam aos centros de consumo do outro lado do Brasil, o mais rico e poderoso, por extensas linhas de transmissão. Uma espécie de transfusão de sangue em forma de kilowatts. Uma hemorragia,
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