quarta-feira, 9 de março de 2011

Cabanagem inspira romance de escritor santareno. 'Invenção de Onira' ganha nova edição

Carlos Herculano Lopes
O Estado de Minas
  
Tendo como pano de fundo a Cabanagem, movimento armado contra o poder central registrado na Província do Grão-Pará de 1835 a 1840, completamente dizimado pelas tropas imperiais, o escritor e advogado Sant’Ana Pereira lançou, há 23 anos, o romance Invenção de Onira. Restrito ao Pará, com pouca divulgação no restante do país, o livro ganha agora nova e oportuna edição pela Editora Letra Selvagem, de Taubaté (SP).

Nascido em Santarém, no interior paraense, em 1936, Sant’Ana Pereira, a exemplo de outros autores da terra, como Dalcídio Jurandir e Benedicto Monteiro, elegeu como tema de suas histórias o universo da Amazônia brasileira, com toda a sua exuberância e seus fatos corriqueiros. Em Invenção de Onira, elementos fantásticos se mesclam a acontecimentos reais protagonizados pelos cabanos. “Busco minhas histórias nas margens dos rios, nos igarapés, nas matas bravas, nos igapós e em fatos testemunhados, vividos ou temidos”, contou o autor a Carlos Herculano Lopes.


Como se deu a construção de Invenção de Onira, em que você recria episódios da Guerra dos Cabanos?

Desde criança, menino de interior, longe da capital, ouvi fantásticas histórias contadas pelas minhas avós sobre os cabanos – ora heróis, ora vilões nesses relatos. Sentia medo se me ameaçassem com cabanos, ora queria ser um cabano bem escroto. Afinal, não sabia que diabo era um cabano e muito menos Cabanagem. Já adulto, na faculdade, já envolvido com a literatura, elegi esse capítulo da história do Pará como tema para sobre ele desenvolver a minha ficção. Orientado pelo professor Carlos Rocque, li tudo que se escrevera sobre essa matéria. Sem tempo para permanecer na Biblioteca Pública do Pará, tive a colaboração de quem se dispôs a copiar à mão livros inteiros que não podiam sair de lá a fim de que pudesse lê-los. Acabei desaguando na fonte de todos: Motins políticos, obra monumental de Domingos Antônio Raiol, agraciado com o título de barão de Guajará. Notando, porém, sua tendência contra o movimento, talvez pelo fato de que seu pai fora assassinado por cabanos, dentro de sua própria cidade, Vigia, no Pará. Depois de tudo, entrei com minha ficção para contar a história, unicamente preocupado com o estético e já bastante tocado pelo realismo fantástico, que me influi até hoje. Daí, em Invenção de Onira, haver criado a Via da Meditação, o Vale das Purgações, árvores produzindo quadras, redondilhas, sonetos e poemas em vez de apenas frutos, além de tantas cenas fantásticas, como a tomada de embarcações por leprosos, cujas armas eram apenas suas próprias chagas.

O escritor Nicodemos Sena, ao escrever sobre Invenção de Onira, disse que a revolta dos cabanos ainda está, de certa forma, no inconsciente dos povos da Amazônia. Você concorda?

Veja-se o que acontece até nas novelas, que ganham audiência em todo o país: tudo o que não presta de coisas e pessoas sempre ameaçam jogar para a Amazônia, como se fôramos o lixo da nação. Com certeza, consciente ou inconscientemente, tem-se vontade de uma nova Cabanagem, ficando-se aqui o que existe de melhor no território brasileiro, tal como ocorre em Onira, que acaba nas mais de 300 ilhas de Anavilhenas, no Rio Negro.

Há muita verdade histórica em Invenção de Onira ou o livro é pura ficção?

Entendo que a ficção completa a história. A ficção em Invenção de Onira entra nos interstícios da história. Quando, por exemplo, descrevo detalhes da prisão de Antônio Vinagre (presidente cabano), estou tentando completar o melhor relato de Domingos Raiol, o barão de Guajará, em Motins políticos, que se tornou a bíblia da Cabanagem. Os detalhes poderão ter ocorrido, por que não? Se, sobretudo, são detalhes no íntimo do personagem... Na realidade, antes de escrever o romance, li tudo sobre o movimento dos cabanos. Não tenho compromisso com a história. Minha abordagem é estética. Teve razão Olga Savary, quando incluiu um capítulo de Onira na coletânea Poesia do Grão Pará, ressalvando que, embora o texto seja prosa, o conteúdo é poesia. Certo é, porém, que quem ousar ler o livro acabará contando a história beatificada da dita revolução autenticamente popular ocorrida em território brasileiro.

E a literatura feita pelos autores da Amazônia? Como você a situa em relação ao resto do país?

A única diferença que vejo está no nosso isolamento. Temos por aqui os mesmos Machados, os mesmos Drummond de Andrade, os mesmos Euclides, os mesmos e bons autores do país, só que sem dispor de sinos que badalem chamando para o ritual da missa. Muitos por aqui me encantam, sendo até injusto nominar. Mas vão nomes queridos: Ildefonso Guimarães, Dalcídio Jurandir, Benedicto Monteiro, Nicodemos Sena, Vicente Cecim, Alfredo Garcia, Alonso Rocha, Juracy Sequeira, Milton Hatoum e tantos outros.

Invenção de Onira foi lançado em 1988 e seu último romance foi A torre de Diaphanus. Você está escrevendo alguma coisa nova?

Quando foi publicado Os sarapás, dizia que meu compromisso com a Amazônia, em matéria literária, tinha acabado, posto que, a partir daí, iria me repetir. Com certeza, isso foi força de expressão, já que daqui não saio e daqui ninguém me tira. Mas o livro seguinte, A torre de Diaphanus, acaba sendo Amazônia pura, narrando, em suspense, um processo judicial que dura 24 horas. Note-se que esse livro é anterior ao Código da vida, de Saulo Ramos, que nasce, cresce e acaba contando a história de um processo do qual participou um atual ministro do Supremo Tribunal Federal. Esse livro pode não ser literariamente o melhor que eu tenha escrito, mas foi o que me deu mais alegria em matéria de leitores. Uma pessoa me acordou às cinco da manhã para reclamar que não havia dormido, presa no livro. Ouvi um desembargador dizer-me que aquilo era um absurdo. No momento, depois de superar trauma da troca de uma válvula cardíaca, escrevo o romance Corpo sem sombra. Parei agora para ler o sabotado Gustavo Corção, em Lições de abismo, para ver se não estou dizendo o que ele já disse nessa impressionante obra, de 14 edições e cinco traduções, que trata da morte.

Você também é daqueles autores que reescrevem muito? Como se dá o seu processo criativo? Afinal de contas, literatura serve para quê?

Escrevo porque esse é o meu melhor jeito de falar. A literatura eterniza a palavra. Só escrevo depois de viver a matéria, a ideia, a inspiração ou todo o enredo do meu íntimo. Só escrevo quando esse ato me gera prazer. Detalhes, vivo-os no ato de escrever ou, melhor dizendo, no ato de digitar. Não reescrevo meus textos. Depois de digitados, ou eles ficam no arquivo, ou passam a correr mundo, sendo o que Deus quiser. Tratando-se dos textos a serem editados em forma de livro, obviamente submeto-os a um revisor.

Além de escritor e advogado, você é homem de negócios. Como a literatura entrou em sua vida?

Sem dúvida, meu apego à leitura começou com As caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, que recebi como prêmio de primeiro lugar da minha turma de segunda série primária, no Grupo Escolar Frei Ambrósio, em minha terra, Santarém. Depois veio a fase do internato em Lagoa Seca, no interior da Paraíba, na Serra da Borborema. Lá existia uma biblioteca fantástica, além de mestres brasileiros e alemães inesquecíveis. O estudo do latim, do grego, do alemão e do francês. O grêmio literário. Em suma: respirei literatura desde menino. Em seguida veio a fase adulta: o jornalismo, o magistério, a faculdade de direito, o trabalho no Banco do Brasil. Também como diretor de empresas. Mas, sobretudo, este pano de fundo literário, que é a Amazônia, as margens de rios, igarapés, matas bravas, igapós, histórias fantásticas, léguas de beiço, jornais boca a boca, fatos testemunhados, vividos ou temidos. Aquilo que o escritor Nicodemos Sena narra em A espera do nunca mais, esse livro sagrado da Amazônia. Parece que tudo sou eu.


INVENÇÃO DE ONIRA

De Sant’Ana Pereira
Editora Letra Selvagem,
271 páginas
Informações:
letraselvagem@letraselvagem.com.br; www.letraselvagem.com.br

Revolta Popular

 
De 1835 a 1840, a Revolta dos Cabanos, ou Cabanagem, dominou a província do Grão-Pará. O movimento é considerado por especialistas como desdobramento regional da Guerra da Independência, pois desde 1822 a agitação se alastrava na região. Isolada do centro do poder, concentrado no Rio de Janeiro, e administrada por homens pró-Portugal, a província só reconheceu a independência em 1823. Mesmo assim, sob muita repressão.

As péssimas condições de vida da maioria da população, formada por índios, negros e mestiços, foram o combustível para a Cabanagem. A abdicação de dom Pedro I teve profundos reflexos no Grão-Pará: revoltosos depuseram os governantes impostos pelo Rio de Janeiro.

Os irmãos lavradores Antônio e Francisco Vinagre, o seringueiro Eduardo Nogueira Angelim e o jornalista Vicente Ferreira Lavor se destacaram entre os líderes cabanos. O regente Feijó decidiu sufocar a desordem, enviou esquadras para Belém, mas os revoltosos se concentraram no interior paraense. As tropas federais só retomaram o controle em 1840. Calcula-se que 30% da população, cerca de 30 mil pessoas, morreram nos conflitos.

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