quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A hora de discutir o papel social do chef e a sustentabilidade na gastronomia


Por Roberto Smeraldi
Para o Valor, de São Paulo

Há riscos e oportunidades num mundo que passou progressivamente a assistir gastronomia antes do que praticá-la. Quando um chef transcorre mais tempo perante os holofotes do que dedica à tábua e ao fogão, aumenta a chance de comermos um prato assinado por ele, em vez que cozinhado por ele. Aí alguns podem, legitimamente, preferir o chef-alfaiate ao chef-grife. Que por sua vez, assim como o estilista, assume a função de nortear a oferta mais ampla do prêt-a-porter.

Ao mesmo tempo, quem passa a influenciar milhões de pessoas e gerar tendências na sociedade também assume responsabilidades que vão muito além do rincão de sua cozinha. E aí viram sua obrigação e interesse, ao mesmo tempo, internalizar itens que eram antes considerados externalidades, passando a gerar valor a partir deles e da maneira em que lida com eles: desde as condições de origem e reprodução do ingrediente até os hábitos das novas gerações aflitas pela obesidade e hipertensão infantil, desde a minimização do desperdício até a pegada de sua atividade sobre a mudança climática.

Há um ano, com algumas dezenas de pessoas inspiradas, do mundo todo, elaboramos a Carta de São Paulo sobre Gastronomia e Sustentabilidade, no âmbito da Semana Mesa, evento internacional que reúne chefs, críticos e apaixonados diversos. Antes que por obrigação ou cobrança, fomos movidos pelo estímulo a gerar mais valor na cadeia. Temas como perdas de alimento, resíduos, gestão da água, biodiversidade, agricultura familiar e indicações geográficas começaram a ser considerados ingredientes do nosso prato, tão quanto o azeite, o atum e o feijão. Aliás, o valor do azeite, do atum ou do feijão - muito além do que refletem seus preços - começou também a incorporar os serviços socioambientais que viabilizam sua disponibilidade, diversidade e qualidade. O conceito, ao longo do último ano, foi se espalhando mundo afora, numa teia de declarações e compromissos semelhantes, às vezes superpostos e mais ou menos consistentes.

Nos próximos dias, a Semana Mesa 2011 vai aprofundar a discussão: já é hora de ampliar o entendimento dos princípios norteadores da Carta de São Paulo perante públicos diversos ou será o caso de começar a definir critérios, para orientar a tradução dos belos princípios em ações mais concretas? Ou ambos ao mesmo tempo? É um bom debate: de antemão sabemos que hoje, ainda, poucos passariam no teste do que pregam, o que não necessariamente desqualifica a validade do que pregam. Significa apenas que o chef formador de tendência, sozinho, dificilmente será capaz de implementar modelos de sustentabilidade e terá de estimular a articulação com outros elos das cadeias relevantes, como a logística, a infra-estrutura, o consumo, o comércio. Haverá também necessidade, assim como nos setores que já avançaram em diversos tipo de certificação, de atestados independentes, em vez de autodeclarações.

Ao mesmo tempo, nada disso vai acontecer sem um ingrediente primordial, chamado liderança. Característica do grande chef é aquela de criar técnicas para aguçar os sentidos, despertar a apreciação pelo inusitado. Hoje isso passa em grande parte pelo reconhecimento e valoração do conjunto dos territórios, com suas características físicas e culturais: uma seara na qual o Brasil acumula, ao mesmo tempo, seus maiores atraso e potencial. Rumo a um cenário no qual o chef estrelado compartilhará o holofote com o pescador estrelado, o agricultor estrelado, o artesão estrelado, inspirando cada consumidor a virar estrela de sua própria família, resgatando o ato de cozinhar.

*Roberto Smeraldi é jornalista, gastrônomo e diretor da OSCIP Amigos da Terra - Amazônia Brasileira

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