Lúcio Flávio Pinto
Articulista de O Estado do Tapajós
Duas extensas rodovias iniciaram, no final dos anos 1950, a integração definitiva da Amazônia ao Brasil. Eram a Belém-Brasília e a Brasília-Acre, com mais de dois mil quilômetros de comprimento. Seus eixos partiam da capital federal nos rumos norte e oeste da nova fronteira econômica em abertura. O mineiro Juscelino Kubutscheck queria que, nos seus cinco anos de mandato como presidente da república, o Brasil se desenvolvesse num ritmo 10 vezes superior à medida do tempo: “50 anos em 5”, era o seu slogan.
O ciclo dos “grandes projetos”, entretanto começou e se consolidou mesmo durante os governos dos generais, que se sucederam de 1964 a 1985. O primeiro desses “grandes projetos” entrou em operação em 1979. O equivalente a um bilhão de dólares foi investido para que nesse ano começasse a funcionar uma das maiores minas de bauxita do mundo.
Distante mil quilômetros do litoral, numa região isolada e pouco habitada da selva amazônica, em Oriximiná, sua capacidade nominal era de 3,5 milhões de toneladas do minério, que dá origem ao alumínio, Hoje produz seis vezes mais.
Dezenas de grandes navios singram os rios Amazonas e Trombetas para ir buscar a carga, que é distribuída pelo mundo. Outras duas grandes jazidas de bauxita entraram depois em atividade no Pará porque a produção da primeira não pode mais crescer. O rio Trombetas simplesmente não comporta mais nenhum navio. Sua capacidade de escoamento foi saturada.
Durante os seis primeiros anos de funcionamento, o grande projeto” do Trombetas ofereceu aos seus visitantes um espetáculo de desperdício, irracionalidade e selvageria.
O transporte do minério entre a mina e o porto, numa distância de 28 quilômetros, era – e ainda é – feito por trem. Um terço da carga era de rejeito, argila inaproveitável, sem o teor de alumínio necessário para processamento. Uma vez descartado do processo de lavagem e secagem, esse material era despejado num dos mais belos lagos da região, o Batata.
Quase 20% da superfície do lago se tornaram terreno sólido, compactado. A água do lago que sobreviveu à sedimentação ficou vermelha. Vermelha ficou também toda a paisagem ao redor. Como boa parte da produção ia para o Canadá, onde está a sede de um dos sócios do empreendimento, a Alcan, o minério precisava ser secado para não congelar nos porões dos navios nos períodos de inverno mais intenso.
A secagem era feita em fornos, que deixavam escapar uma nuvem de pó vermelho, da cor da bauxita, pela chaminé. O combustível era derivado de petróleo, muito poluente. Durante um tempo a madeira também foi queimada. Como o governo pretendia construir uma hidrelétrica às proximidades, em Cachoeira Porteira, a Mineração Rio do Norte foi autorizada a abater as árvores situadas na área do futuro lago. A hidrelétrica não saiu. As árvores foram sacrificadas em uso muito menos nobre do que se tivessem permanecido ali, em pé.
Em 1985 o recém-empossado presidente José Sarney foi à mina, na época controlada pela estatal Companhia Vale do Rio Doce (em parceria com cinco multinacionais e o grupo Ermírio de Moraes, o maior do alumínio no Brasil). A TV Globo documentou a visita. Entre imagens festivas, exibiu cenas chocantes do lago assoreado e da paisagem coberta de pó vermelho. Foi um impacto, de repercussão internacional. Parecia uma estampa de Marte na Terra.
Como é que uma mineradora, reunindo tantos sócios importantes no mundo, se comportava daquela maneira? Por que, ao invés de transportar lixo mineral de trem para descarregá-lo depois num esplêndido lago natural, não fazia a lavagem e a deposição na própria mina? Por que não colocava filtros nas chaminés da usina de secagem de bauxita para evitar a poluição?
Eram tantos e tão graves os questionamentos que a Mineração Rio do Norte precisou fazer novos investimentos e ir atrás de tecnologia para corrigir os erros flagrantes.
As operações de seleção e descarte do minério foram transferidas para o alto da serra do Saracá (outras já foram lavradas desde então), onde estava a primeira jazida explorada. Os buracos provocados pela extração da argila, uma das sequelas da lavra, foram preenchidos com terra vegetal e feito o replantio das espécies nativas, restabelecendo a paisagem natural (embora não integralmente).
Nunca uma mina de bauxita abrigara essa experiência. A técnica foi adaptada de minas de fosfato da Flórida, nos Estados Unidos. O pó vermelho desapareceu. Só então esse “grande projeto” entrou no século XX, antecipando-se à centúria seguinte,
Talvez se as imagens de televisão não tivessem corrido mundo, colocando em má situação perante a opinião pública internacional o primeiro presidente civil depois das duas décadas de regime militar de exceção no Brasil, e logo em sua primeira viagem (e ainda mais: à glamourosa Amazônia), as mudanças não tivessem acontecido. Ou pelo menos não seriam promovidas de forma tão ampla e imediata.
Outra grande mina de bauxita começou a funcionar há dois anos do outro lado do rio Amazonas, quase na mesma posição geográfica da jazida do Trombetas. É de propriedade exclusiva da Alcoa, a maior empresa de alumínio do mundo, que também participa da Mineração Rio do Norte e tem um pólo de alumina e alumínio em São Luiz do Maranhão.
A multinacional americana se instalou em Juruti sem querer repetir os erros do Trombetas. Adotou várias iniciativas para que sua entrada na nova região fosse suave e sem maiores impactos sociais e ecológicos. Garante que pretende funcionar sob um padrão de excelência sem igual em qualquer outro lugar.
Não está conseguindo. Surgiram áreas de atrito com a população primitiva, resistências e conflitos. Mas nem sempre a responsabilidade pode ser transferida à empresa. Às vezes é por desconhecimento, desinformação ou má orientação dos seus críticos ou adversários.
Vê-se que eles ignoram a história evolutiva dos seus vizinhos do outro lado do gigantesco Amazonas. Um dos seus manifestos ainda faz referência aos buracos abertos na mina e ao assoreamento do lago Batata, como se o modo antigo de produção continuasse em vigor. Como se não tivesse existido toda uma história para mudar a situação original.
Uma visita ao local os colocaria em sintonia com a realidade. Não para que necessariamente mudem de posição. Mas para perceberem que a complexidade da Amazônia impõe mais do que iniciativas voluntaristas e idéias sem compromisso com a realidade concreta.
Afinal, todos os que vivem nesta incrível região precisam resolver problemas surgidos no contato do homem com essa natureza única. Problemas pequenos ou grandes, recorrentes ou absolutamente inéditos. Do João da Silva ou da multinacional. Se é que querem ficar de vez na Amazônia e não apenas continuar em trânsito, como desatentos turistas ou exploradores, de passagem.
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